Ensaios

Eles não estavam lá

Anteontem, infelizmente, foi mais um dia do orgulho Nerd, ou dia da toalha, ou seja lá como chamam o dia que as lojas online escolheram para dar desconto em quadrinhos, ficção científica, fantasia e jogos em geral. No trabalho, graças aos newsletters das amazons da vida, todos me importunaram com essa história o dia inteiro:

– Viu que hoje é o dia dos NERDS?
– Tem promoção em várias lojas. Você tem o quê? Playstation ou XBOX?
– Não vai querer comprar nenhum jogo? Nem quadrinhos? Ih, deixou de ser Nerd?
– Você prefere Star Trek ou Star Wars? É aquele com o Spock? Ah, é o outro com o robozinho gay…
– Como é nome daquele lance mesmo? Caverna do Dragão? Sabia que no último episódio… Como assim não tem último episódio?

Acho ao mesmo tempo estranho e louvável que o Status Quo tente nos subornar com descontos para símbolos que nada significam para eles. Alguns acham que esse dia é um sinal inequívoco, assim como as séries de TV sobre cultura pop e as inúmeras e plastificadas adaptações de super heróis para o cinema, da vitória dos Nerds. Não é. Sério, não é. O Julio Matos quase conseguiu resumir toda a ambiguidade do meu sentimento sobre o dia de ontem num tweet:

O única coisa com a qual não concordo com o Julio é considerar que existe cultura Nerd. Não existe. Não existe grupo Nerd. Não existe ser Nerd. O tal ser Nerd é ser o outro. Sempre foi e sempre será um termo pejorativo. Ser Nerd é ser o estranho. Aquele que não faz parte do que é apreciado pelo Status Quo.

Parece até que o povo esqueceu de A Vingança dos Nerds. Na fraternidade Lambda Lambda Lamba, se não se lembram, além dos CDFs, tínhamos os imigrantes, os negros, os homossexuais. Todos aqueles que eram execrados pelo Status Quo. Uma fraternidade dos excluídos. Logo, chamar algo Nerd  de Mainstream é como propor a criação do partido anarquista brasileiro. Uma contradição em termos.

Nerds
Não somos apenas brancos, heterosexuais de classe média que gostam de tecnologia

O fato é que nós, os considerados Nerds, não fazemos parte de um grupo único. Portanto, não somos algo cooptável. Não podemos ser O Mainstream, pois o que nos define é estar do lado de fora. Somos os piratas que nunca quiseram ser almirantes. Sim, isso é possível. É difícil acreditar mas alguns seres humanos não querem o poder. Se faz parte da sua índole buscar aceitação externa, acho que você não está no lugar certo…

A maioria não entende, mas somos simplesmente pessoas com experiências incomuns. E valorizamos isso. Somos pessoas que não fizeram, nem fazem parte do que aí está. Por isso é simplesmente horrível que continuamente tentem reduzir nossas experiências a um dia, a piadas internas, a podcasts com mascates escandalosos, a produtos de consumo de massa, a uma (má) subliteratura comercial ou mesmo a uma  palavra de quatro letras que não significa nada. N-E-R-D.

Esse reducionismo institucional de uma imensa rede de relações e de um enorme grupo de culturas diversas e ricas a um só nome chega a ser criminoso. Mas é natural. Afinal é mais fácil agrupar tudo o que não é você num grupo só. Seja ele algo a ser temido ou a ser ridicularizado. O Status Quo precisa disso para justificar a sua união.

Mas, realmente, o que mais me incomoda nessa comercialização do “nerdismo” é a propriedade com que somos estereotipados.  Eles, que nunca estiveram na nossa situação, nunca tiveram e ainda não tem o direito de ao mesmo tempo definir o que acham que devemos ser e ignorar o que realmente somos. Eles, cá entre nós, nem ao menos sabem do que acham estar falando. Olham para pessoas diferentes, com diferentes experiências e visões de mundo e preferem tratar tudo isso como uma coisa só. Por isso, na minha opinião, o melhor é que se calem. O tal dia do Nerd, não se enganem, não é uma homenagem, mas uma afronta a tudo o que vivemos.

Afinal de contas, quem são eles para falar do que e de quem somos? Eles não estavam lá. Eles nunca estiveram.

Eles não estavam lá quando nossos pais, por conta das sucessivas crises econômicas, só podiam nos dar quadrinhos como presentes de Natal e nós adorávamos. Eles não estavam lá quando os X-MEN passaram da RGE para a Abril e a Tempestade deixou de ser chamada de Centelha. Eles não estavam lá quando a Globo começou a publicar Akira, Sandman e Moonshadow, contribuindo com a nossa maturidade emocional. Eles não estavam lá quando visitávamos compulsivamente a EBAL durante seu longo processo de falência buscando as edições em tamanho gigante do Flash com os Novos Deuses e do Super Homem contra o Muhammad Ali. Eles não estavam lá na abertura da primeira Bienal de Quadrinhos maravilhados com o Horus de Bilal dominando todo o salão principal da Casa França Brasil. Eles não estavam lá.

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Esse foi em Portugal, mas dá pra ter uma idéia

Eles não estavam lá quando descobrimos Isaac Asimov. Não estavam lá naquele verão em que a Biblioteca Machado de Assis não tinha Tolkien, Clarke, Howard ou Lovecraft suficientes para saciar a nossa fome de mundos imaginários. Eles não estavam lá quando encontramos uma pilha de livros da coleção argonauta num sebo infecto no fim de Ipanema. Eles não estavam lá vasculhando os catálogos do Círculo do Livro em busca de Bukowski, Kerouac e Burroughs. Eles não estavam lá quando lemos Valis, Os Clãs da Lua Alfa, O Homem do Castelo Alto e nos perguntamos junto com Philip K. Dick até que ponto a nossa realidade é real. Eles não estavam lá.

círculo do livro
O verdadeiro prêmio era ler

Eles não estavam lá quando fizemos nossa primeira ficha de D&D (um elfo, claro); nem quando tolamente colocamos a cabeça numa fresta de porta entreaberta só para sermos decapitados por um troglodita escondido. Eles não estavam lá quando fazíamos versões desses jogos por não termos acesso aos originais; quando usávamos peças Bingo para jogar porque não tínhamos dados de vinte, oito, dez ou doze faces; nem quando passávamos os fins de semana no escritório dos nossos pais tirando xerox dos jogos que alugávamos no Além da Imaginação em Niterói. Eles não estavam lá quando lançaram a segunda, a terceira, a quarta (AAARGH!), nem a quinta edições. Eles não sabem nem do que estamos falando quando discutimos sem conclusão possível sobre qual delas é a melhor. Eles não estavam lá.

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O desenho foi baseado no jogo e não o contrário!

Eles não estavam lá quando passávamos meia hora carregando um jogo de uma fita cassete para um TK 85. Eles não estavam lá sentados em salas de espera de escritórios esquisitos no centro da cidade para comprar disquettes de 5″ 1/4 com jogos para nossos MSX. Eles não estavam lá quando carregávamos monitores de cá pra lá para jogarmos Wolfeinsten à cores. Eles não estavam lá atropelando pessoas em versões piratas do Carmaggedon. Eles não estavam lá esperando 12 horas para o DC Universe instalar. Eles não estavam lá quando compramos o OUYA com o pretexto de apoiar o software livre. Eles não estavam lá.

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Jogar é simbolizar

Eles não estavam lá quando fazíamos dever de casa extra sem esperar recompensas. Eles não estavam lá quando criamos um jogo de tabuleiro sobre a guerra do Vietnam para a aula de história contemporânea. Eles não estavam lá apanhando de metade da turma por sugerir ingenuamente que a prova de Cultura Clássica fosse baseada num texto em francês arcaico mencionado na segunda edição do Advanced Dungeons & Dragons. Eles não estavam lá na biblioteca do colégio durante as férias esperando os nossos amigos que estavam em recuperação para jogar RPG. Eles não estavam lá quando o professor de geometria nos deixou fascinados com o triângulo de Sierpinski e nos estimulou a ler o livro do Benoit Mandrelbrot (que também tinha a ver com o Watchmen). Eles não estavam lá.

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Meias dimensões e teoria do caos antes do café da manhã

Eles não estavam lá tentando se conectar à Compuserve e à Illuminati Online com nossos modems de 2400 bauds. Eles não estavam lá trocando idéias com o Hiro na área de RPG da BBS da CentroIn. Eles não estavam lá quando a nossa melhor fonte de links e sites eram revistas importadas encontradas nas livrarias dos aeroportos. Eles não estavam lá gerenciando fóruns de discussão sobre RPG ou escrevendo resenhas e artigos para a Jogos.com.br antes do estouro da primeira bolha. Eles não estavam lá no Napster, Geocities,  Blogspot, Reader, nem no Wave. Eles não estavam lá apagando as luzes de nossos sites contra SOPA e PIPA. Eles não estavam lá.

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Você não conhece o Hiro? Não acredito!

Eles não estavam lá carregando mesas e cadeiras pela UERJ para realizar a RPG RIO. Não estavam mestrando Teenagers from Outer Space para quarenta pessoas ao mesmo tempo. Eles não estavam em ônibus indo para São Paulo, Minas, e outras cidades do Brasil para participar de feiras, convenções de RPG, comprar fanzines e quadrinhos independentes. Eles não estavam lá participando da Quero Jogar RPG, testando jogos de tabuleiro ou criando-os nos desafios do Faça Você Mesmo e do Game Chef. Eles não estavam lá. Não estavam mesmo. E nunca irão estar.

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Sim, eu fui e ajudei a organizar

Por isso, eles não podem falar de quem somos. Nem decidir quando é o nosso dia. Eles não podem continuar nos chamando de Lambda, Lambda, Lambda, Poindexter, Urkel, Cú de Ferro, Dark, Punk. Gótico, Geek, Nerd, Estranho, Whisky-zito,Visconde de Sabugosa, Mestre dos Magos ou Sheldon Cooper em troca de descontos em tralhas, que, na real, não precisamos. Eles não podem usar um termo pejorativo como uma piada, uma brincadeira entre amigos. Algo que, pelo que me lembre, nunca fomos. A pergunta que fica é: quando o insulto destruidor se tornou apenas uma maneira engraçadinha e inocente de referência? E, pior, quando aceitamos isso assim com um sorriso nos lábios? Me perdoem, nesse ponto, tenho que concordar com o Giltônio:

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O pior é que essa multidão querendo carregar uma bandeira supostamente em nosso(?) nome é formada apenas por Jocks consumidores de cultura pop ruim. Gente que comprou a versão resumida de Vingadores, e de tudo mais que é possível encaixar em duas horas e pouca de audiovisual; gente que se acha dono de Mad Max porque gosta de citar Cúpula do Trovão e odeia que a Furiosa seja a verdadeira protagonista do novo filme; gente que espalha ódio em fóruns, redes sociais e caixas de comentários pelo simples prazer de humilhar o outro; gente que ofende mulheres, homossexuais, cosplayers, furries, e todos que forem diferentes deles por se acharem donos de um hobby ou da Internet. Gente que não domina assunto algum, mas ao mesmo tempo se considera dono de tudo. Em resumo, um bando de idiotas.

Enfim, nada mudou. Os Nerds podem ter se vingado no filme mas o mundo real, esse, não mudou. O mundo sempre foi dos Jocks. A única diferença agora é que eles citam o Mochileiro das Galáxias, Senhor dos Anéis e Homem Aranha, mas continuam rindo de nós. Abertamente. Com a nossa anuência. Na nossa época éramos inclusivos. Muito me dói perceber que nossos hobbies foram dominados e transformados em ferramentas de opressão. Gente se dizendo parte de coisas que realmente não ama para exercer fraternidades de terror. A nossa “cultura” mencionada pelo Julio, se existisse, não foi oficializada ou aceita, mas reduzida e ridicularizada. Se transformou em mais uma ferramenta de ódio. Por isso, não se engane, nós, os verdadeiros excluídos, continuamos do lado de fora. Os “patrões” apenas se apropriaram de alguns dos nossos brinquedos.

Nesse dia da Toalha, jogamos a nossa.

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