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Como eu larguei o futebol (e você também pode, mas não precisa)

Olá, meu nome é Lisandro Gaertner e eu já torci pra time de futebol. Sério. Quem já me viu nos esporádicos encontros para assistir aos jogos da Copa do Mundo, enfurnado na cozinha comendo, bebendo e falando de assuntos aleatórios, enquanto o povo torce na sala, pode até não acreditar, mas, sim, eu já fui um torcedor.

Comecei a torcer, como a maioria, por influência do meu pai. Tinha uns 4 anos quando ele me deu uma camisa do Internacional. Meu pai, como todo bom gaúcho exilado, sentia prazer em não torcer para os times do Rio, apesar de secretamente ser vascaíno. O esforço, em todo caso, foi inútil. Fiquei dizendo pra todo mundo que era Colorado por umas duas semanas, até que a brincadeira perdeu a graça e, puff, não era mais Internacional. Só voltei a me interessar por futebol na Classe de Alfabetização.

Influenciado por uns maus elementos de 5 anos que ficavam perto dos balanços no recreio, comecei a torcer pro Flamengo. Minha mãe, tricolor, e meu pai, vascaíno enrustido, mesmo contrariados, apoiaram. Compraram camisa pra mim e tudo. Mas não foi tão difícil. No início dos anos 80, o Brasil inteiro tinha um caso de amor com o Flamengo. Acompanhei inclusive no meio da madrugada a final do campeonato mundial no dia, não esqueço, 13 de dezembro de 1981. Imaginem que conquista prum menino de 7 anos “ser” campeão do mundo .

Mas nem tudo eram flores. O Flamengo, apesar de ter o seu time mais lendário, também perdia. E eu sofria. De chorar. Lembro de ter ido ao Maracanã assistir a um jogo com um amigo e seus pais e voltar aos prantos para casa. Minha mãe me acalentou e plantou a semente que quase dez anos depois ia permitir a minha libertação:

– Meu filho- ela me disse-, você não pode levar o futebol tão à sério.

Você não pode levar tão à sério. Você não pode levar tão à sério.

Depois daquele dia, virei a casaca. Não tenho vergonha de admitir. Virei a casaca mesmo. Pra agradar meu pai e me livrar do sofrimento que era torcer pro Flamengo, virei Vasco.

Taí uma das coisas que mais me incomoda nos esportes de clube em geral: o estigma de virar casaca. Esse tipo de pressão para se manter ao lado de algo que não mais lhe agrada ou dá prazer é uma espécie de treino perverso para a lealdade incondicional. Se as pessoas fossem livres para virar a casaca, talvez estivessem mais acostumados a mudar de ideia sobre tudo e a nossa convivência seria bem mais harmoniosa. Posso estar exagerando mas essa é a minha opinião. Pelo menos por enquanto.

Me mantive Vasco, sem me ligar muito em Futebol, até mais ou menos os 10 anos. Novamente sob a influência de péssimos colegas de classe, voltei a acompanhar os campeonatos. O Vasco estava passando por uma boa fase na época e calhou que todos os meus amigos mais próximos também eram vascaínos. Pra ter assunto no recreio, passei a acompanhar mais os jogos e inclusive tinha carteirinha do clube do Vascaíno Doente, que era distribuída pelo radialista e, óbvio, vascaíno doente Áureo Ameno.

A carteirinha
Sim, isso é real, mas não é a minha

Essa fase durou uns 4 anos. Mesmo torcendo e acompanhando tudo o que podia, não me lembro de ter criado inimizade com ninguém ou mesmo humilhado os torcedores dos nossos fregueses na época. Torcia, mas era uma torcida mais introspectiva. O que eu curtia mesmo era ouvir rádio AM, bater papo e ler todos os jornais. Nenhuma vez nesse período fui aos estádios ou assisti a jogos com outras pessoas. Sempre tive esse espírito de viúvo aposentado que joga damas no Largo do Machado.

Um dia, chegou meu fundo do poço. O Vasco ia enfrentar o Flamengo na final do Carioca pelo bicampeonato. Depois de um jogo tenso e sem gols, aos 44 minutos do segundo tempo, Cocada, saído do banco há dois minutos, em disparada, sozinho, cravou o gol que consolidou a última vitória do Vasco sobre o Flamengo numa final de campeonato carioca até hoje. Dormi de alma lavada.

No dia seguinte, meus pais me acordaram em festa com o Jornal dos Sports e com o poster do time do Vasco. Quando me deixaram sozinho após diversas felicitações, senti um vazio tremendo. Que diabos estava fazendo com a minha vida? Minha identidade e minha felicidade eram dependentes de algo externo a mim? Será que ser Vasco era o que me definia? Não, eu não queria acreditar nisso, mas as evidências eram tremendas. Gastava uma hora por dia lendo os cadernos de esporte; mais uma hora ouvindo aos comentários da manhã; quando tinha jogo, mais duas horas; e pra finalizar uma hora de comentário esportivo noturno. Sem contar o tempo que conversava sobre futebol, mais de 20% da minha vida era devotada ao Vasco, uma entidade cujos participantes estavam pouco se lixando para salvaguardar a minha alegria e a minha saúde mental. Era muito caro para se fazer parte de algo. Escolhi ser sozinho.

Então, do dia pra noite, nunca mais acompanhei futebol nem outros esportes. Aos poucos esse meu desapego começou a se espalhar por outras áreas da minha vida e me libertou também de religião, ufanismo, posicionamento político, séries de TV e todas essas outras coisas que o povo trata como sérias mas não passam de clubinho.

Graças a Deus, não virei estraga prazeres, nem fico fazendo campanha pros outros seguirem meu caminho. Quando um grupo de amigos assiste a um jogo, até acompanho respeitosamente, mas sinto que desaprendi o futebol e quase sempre me pego fazendo perguntas imbecis. É quase como não ser católico e rezar o Credo nos casamentos em que somos convidados. Não cremos mas gostamos uns dos outros o suficiente para fingir.

Compartilho essa minha história, pois ela pode ajudar quem precisa se libertar de outras idéias ou simplesmente precisa virar a casaca. Afinal, o que descobri foi que nada que dizem de você é verdade, apenas aquilo que você mesmo acredita que você é. Por isso, saiba, você não é flamengo, botafogo, vasco, fluminense, ou mesmo brasileiro. Você pode ser quem você quiser, como quiser e ninguém tem direito de lhe criticar por isso. E você também pode mudar de ideia. Quantas vezes quiser. Garanto, em alguns momentos, virar a casaca pode ser extremamente salutar. Bom, é nisso que acredito. Pelo menos por enquanto.

Mas, cá entre nós, vou te falar, esses pernas de pau que botaram pra jogar nas Olimpíadas tão desafiando até o meu desapego. Ô, gentinha mais desclassificada, meu santo Dalai Lama. Não há zen budismo que nos permita suportar essa seleção brasileira.

1 thought on “Como eu larguei o futebol (e você também pode, mas não precisa)”

  1. Concordo com você em gênero, número e grau. Tenho uma história super parecida com a sua, nasci Flamengo e mudei para o Vasco. E há muitos anos me desapeguei totalmente de futebol. Nosso tempo é muito valioso para se perder horas por dia com este assunto…

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