Ensaios

A Odisséia Carioca

Assim como os londrinos anseiam pelos raros dias de sol nos quais poderão se desnudar nos parques e se deixar banhar pelos seus raios, a maioria dos cariocas anseia pelo frio. O meu primeiro dia não quente após a minha volta à cidade foi ontem.

A chuva varou a noite e deixou o clima ameno pela manhã. Uma heresia para o panteão dos deuses cariocas só preocupados com sol, mar, praia, chopp e futvolei. Uma benção para um herético como eu. Graças ao alívio climático, eu podia botar em ação o meu plano de ir ao trabalho de bicicleta.

Tomei café, banho e rumei a um dos postos da Bike Rio com meu capacete embaixo do braço. Seguindo a orientação da minha mulher botei uma camiseta na mochila para alguma eventualidade que eu tinha certeza não ocorreria. Na estação da Bike Rio apenas uma bicicleta: a 13, fato que achei auspicioso. Botei meu capacete, limpei a água empoçada no banco e dei uma olhada no céu. Ainda estava muito nublado, mas não haveria de chover mais. Pelo menos era o que eu esperava.

Atravessei rapidamente a orla vazia até a Princesa Isabel e me congratulei por ter desafiadoo senso comum e, mesmo ameaçando chover, ter me disposto a fazer uma atividade física ao ar livre. Atravessei o túnel novo com cuidado desviando dos mendigos que dormiam na ciclovia. Cheguei à bifurcação da Urca e desci em direção ao aterro. Pelos meus cáculos tinha feito uns 4 km em 15 minutos. Nesse ritmo chegaria no trabalho em mais 30 minutos. Mais rápido até do que se tivesse ido de metrô. Muito esperto, pensei. Como Ulisses, me sentia mais sábio do que os deuses que comandam o destino da cidade do Rio do Janeiro. Óbvio, como Ulisses, eu precisava ser punido.

Ao chegar na praia de Botafogo senti os primeiros pingos. Chuva passageira, tinha certeza. Ao chegar na altura do Edifício Argentina, meus óculos nublados e minha roupa encharcada não deixavam dúvida: aquela chuva tinha vindo pra ficar.

Vencido, me resignei à vontade dos deuses cariocas e embaixo de uma árvore saquei o celular para encontrar um posto onde poderia deixar a bicicleta. A chuva jorrava por entre as folhas que deviam me proteger e meu dedo deslizava sem efeito sobre a tela. Dalí não teria informação alguma. Decidi continuar até o aterro onde, mais uma vez, na minha punível presunção, tinha certeza, haveria um posto.

A chuva apertou e as poucas pessoas que passavam por mim (nenhuma de bicicleta) corriam para se proteger. Mais pesado pela chuva e freado pelo vento, eu pedalava com esforço sem sinal de salvação. Passei por um gari e gritei:

– Amigo! Onde encontro uma estação da Bike Rio?

Encolhido embaixo de uma árvore e coberto por seu manto laranja, ele respondeu:

– Segue em frente e vira à direita em direção à praia. Não tem erro.

Não. Tem. Erro. Famosas últimas palavras.

Segui as orientações desse falso vidente e nada encontrei. Cheguei à praia e pra todo lado nem sinal das estações laranjas da Bike Rio; mas, ao mesmo tempo, duzentas coisas similares competiam pela minha atenção. Aparelhos de Ginástica. Laranjas. Latas de lixo. Laranjas. Bancos. Laranjas. Placas. Laranjas. Me questionei quando as cores oficiais da cidade deixaram de ser o azul e branco em detrimento desse laranja horroroso que representa essa velha nova gestão. Eu estava certo de que não só os deuses mas também os poderes terrenos conspiravam contra mim.

Atravessei metade da praia, ainda procurando por um lugar onde deixar a bicleta e nada. Minhas roupas desfaziam o mito de que é impossível ficar molhado além da conta. Não havia limite para a crescente sensação de umidade que me dominava. Quando cheguei ao fim da praia do Flamengo, lancei um olhar para o céu, filtrado pelas minha lentes salpicadas de gotas, e desafiei os deuses:

– Mete bronca!

Agora já era tarde demais para desistir. Eu podia ter pecado contra os deuses do sol e dos esportes ao ar livre fazendo esse trajeto de bicleta num dia nublado, mas eles não me venceriam. Como Ulisses chegou à Ithaca, após dez anos de trajeto, eu chegaria ao centro da cidade. Quisessem os deuses ou não.

Minha insolência foi punida com mais chuva. Nas subidas e descidas do aterro na altura da Marina da Glória, a bicicleta gemia e derrapava, mas eu continuava firme. Eles mandavam mais água. Eu compensava na determinação.

Quando passei pelo monumento aos pracinhas, a chuva diminuiu. Era como se a minha cabeça dura de alguma forma houvesse aplacado o ânimo dos deuses. Apesar de precisarem de devoção e obediência para continuarem existindo, são os hereges que os desafiam que dão aos deuses sua razão de existir.

Cheguei ao MAM e me dei o direto de descansar uns minutos. A chuva diminui ainda mais. Respirei fundo algumas vezes e quase caí na asneira de me congratular. Ainda faltava um pouco para eu chegar ao meu destino. Não cometeria esse erro novamente.

Subi na bicicleta, atravessei a passarela e caí na ciclovia da Graça Aranha. Estava no centro da cidade. Segui fielmente o seu trajeto e nada de estações da Bike Rio. Ao chegar na São José, parei numa banca de jornal e indaguei pelo fim da minha jornada:

– Tá cego, cara? É logo alí- o jornaleiro indicou.

E lá, no meio da praça, estava a estação onde terminaria a minha jornada. Um alívio. Mas durou pouco. De longe parecia que todas as estações estavam ocupadas. Gelei. Será que esse não seria o fim da minha odisséia? Seria obrigado a continuar até achar um lugar vazio para encaixar a minha bicicleta?

Pedalei rezando. Por favor, tenha uma estação livre. Por favor, uma estação livre. Por favor, uma estação. Por favor…

E lá estava ela. Livre. A última estação. A estação 13. Fechei um ciclo.

Travei a bicicleta e fiz o resto do caminho até o trabalho a pé. Antes de entrar no prédio, parei embaixo de uma marquise e troquei de camisa sob os olhares de reprovação dos executivos que chegavam para trabalhar. Estava cansado, molhado e prestes a começar uma gripe, mas estava feliz. Frente à adversidade, na qual eu mesmo me coloquei, é verdade, eu tinha perseverado e vencido. Os deuses cariocas tinham meu respeito, mas eu também tinha ganho o respeito deles.

Cheguei ao trabalho e sentei na minha cadeira. As pessoas chegavam sacudindo os seus guarda-chuvas. Secas. Reclamavam do tempo e de como tinham sido incomodadas pela chuva. Elas não sabiam de nada. Pensei em compartilhar com elas minha aventura e botar em perspectiva sua vida. Não, eu não tinha esse direito. Ninguém podia aprender nada com aquela aventura; a não ser eu mesmo.

Liguei o computador e na tela escura vi meu reflexo. Eu estava vivo. Eu estava no Rio.

Seja bem vindo à Ithaca, Ulisses.

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