Ensaios

Brexit, Trump e Bolsonaro: o Contra-Script do Amor

A queda do socialismo foi um golpe cognitivo tremendo. Óbvio que já tinha gente preparada. Gente trabalhada na psicanálise por anos de movimento hippie, amor livre e protestos pacifistas. Gente que já sabia o que fazer quando toda aquela animosidade acabasse. Quando o muro caiu, esse povo rapidamente se movimentou enquanto os outros que não acreditavam no que estava acontecendo simplesmente ficaram alí sentados em choque com saudades do que se foi.

Mas o tempo passa, as coisas mudam e o que era novidade começa a se tornar sistema; e, como tal, passa a dar defeito. Nada fatal mas é o suficiente para o povo da nostalgia do pior se levantar de dedo em riste e atacar: “A-HA! Eu disse que não ia funcionar!”.

E aí? Vamos reconstruir os muros?

Aí é que começa um troço interessante: tudo o que valorizávamos passa a ser ruim e tudo de ruim que motivou a criação do sistema atual passa a ser bom. É o que os analistas transacionais chamam de Contra-Script. O indivíduo que era de um jeito se torna o oposto para reforçar as mudanças que acha necessário fazer. É o traficante que vira pastor, a estrelinha infantil que vira diva sexy, o engenheiro careta de meia idade que vira ator alternativo, a mãe de família carola que vira uma devoradora de homens. Manja os tipos?

Esse comportamento que parece mega deplorável a nível individual se repete à exaustão e sob aplausos coletivamente. Partidos, comunidades, cidades e até nações caem nessa sem parar. Sempre tem um movimento para criar o “novo isso ou novo aquilo”, mas nunca tem um movimento para “melhorar o que conseguimos”. Esse tipo de movimentação acaba por nos colocar num círculo vicioso de dar um passo para frente e dois pra traz. Enfim, viver de retrocessos.

A saída da Inglaterra da Europa, os grupos que defendem o Bolsonaro e a candidatura do Trump são fenômenos desse tipo. São a vingança do instinto de morte que tinha sido enterrado na Guerra Fria. Lembram da Guerra Nuclear iminente, das ditaduras políticas, da censura e da patrulha comportamental? Tudo o que nos interessava naquela época era pular nas gargantas alheias e estraçalha-las, pois alguém precisava estar certo. Estávamos como Rambo e o Comando para matar transformando a violência em fetiche para ter prazer. Quando o muro caiu o movimento se inverteu; abafamos Thanatos e nos rendemos a Eros. Criamos mercados comuns, expandimos relações e o multiculturalismo, lutamos pela liberação dos costumes e comportamentos sociais. Enfim todos podiam estar certos. Éramos só amor. Não é à toa que o grande herói desse tempo é o Dude, Jeffrey Lebowski, com seu adágio: “Well, that is your opinion, man”.

O liberalismo em resumo

Mas não há bem que sempre dure. Assim, as medidas que permitiram uma grande quantidade de melhorias em nossas relações geraram diversas situações de risco. Fronteiras abertas levaram a migrações em massa de refugiados, facilitaram a entrada de terroristas e a expansão de epidemias. Ao invés de tratarmos essas questões como efeitos colaterais do remédio, botamos a culpa em Eros e trouxemos Thanatos de volta para o centro do picadeiro. Não somos simplesmente medrosos. Somos burros. Por que a gente é assim?

Talvez Anthony Burgess tenha a resposta. No seu livro M/F, e também no Laranja Mecânica, ele sugere que a humanidade oscila num conflito entre Pelágio e Santo Agostinho. Somos maus por natureza ou por escolha? Os problemas vem de fora ou de dentro? Precisamos vigiar fronteiras ou os cidadãos? Enfim devemos jogar nossa agressividade para dentro ou para fora? Enfim, Eros ou Thanatos?

Essa visão, mais pessimista que a minha, me remete a uma observação que ouvi certa vez de um delegado de polícia. Ele era um desses policiais da velha guarda, durão, que sentia saudade da Invernada de Olaria. Deu pra visualizar o personagem? Sempre depois de maldizer os problemas atuais fechava seus comentários com a seguinte frase:

– O problema do Brasil é ainda estar na ressaca da ditadura.

O que ele queria dizer é que diversos abusos se justificavam pelo abuso maior que o país tinha sofrido, num processo interminável de vingança contra o que vivemos anteriormente. Se transitamos entre Eros e Thanatos, Agostinho ou Pelágio, tanto faz. O importante é o movimento de embriaguez com o novo sistema e a ressaca inevitável que nos levará ao seu oposto como remédio para curá-la. Como qualquer bebida alcoólica, ideologias, sistemas de governo e teorias econômicas deveriam também ser consumidas com moderação.

É difícil não concordar com ele e ver que tempos difíceis se aproximam. O sistema atual rui, a embriaguez com o próximo começa e, como bêbados inexperientes, nos primeiros drinques é que surgem os maiores riscos.

Sempre fui um partidário de Eros, mesmo com todos os problemas que ele cria. Contudo não vivo sozinho no mundo e sei que as pessoas tem uma grande necessidade de se sentirem seguras. Precisamos aprender a balancear esses dois instintos e não abrir mão de um pelo outro. Precisamos crescer.

Mesmo nos muros pode haver amor

Mas, pelo jeito, não vai ser dessa vez. A Inglaterra sai da Europa, os bolsomitos gritam apoiando o estupro e Trump se prepara para construir o seu muro de Babel. Voltamos ao reino do instinto de morte. O que nos resta? Talvez montar uma comunidade hippie e esperar o momento em que mais uma vez  esses muros construídos sobre tantos já derrubados vão ruir. E nessa hora voltaremos, espero, para compor e não para destruir. Voltaremos, espero, pela derradeira vez. Voltaremos, espero, adultos.

Espero, espero, espero. Mas não acredito.

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