Ensaios

Ecos

No meio da madrugada, o barulho da máquina de escrever elétrica me acordou. Segui o zumbido futurista do deslizar da esfera metálica da IBM até o quarto da minha mãe. Sob uma fraca luminária ela se esforçava para escrever curvada sobre aquela grande peça de metal verde. Fiquei ao seu lado por pelo menos uns 5 minutos antes que ela se desse conta da minha presença.

– Te acordei, filholo?

Ela me colocou no colo e me levou de volta pra cama.

– Desculpa, filholo, mas enquanto não terminar de escrever essa tese vou ser obrigada a passar as noites com o Umberto Eco.
– Quem é Umberto Eco?
– É um homem que eu não sei se amo ou odeio.

*

A greve da UFRJ levou as aulas mais uma vez para janeiro. Eu estava de férias do colégio, mas minha mãe não tinha com quem me deixar. O que fazer? Leva o menino pra faculdade. Ela me sentava no final da turma e eu passava as tardes vendo o povo discutir coisas que eu não entendia e, confesso, ainda não entendo direito.

Naquele dia foi diferente. De noite minha mãe me entregou um livro vermelho e grosso e me disse:

– Pra você não ficar boiando amanhã, lê das páginas 84 à 127.

Eu li. O livro falava dos números perfeitos, da arquitetura do paraíso, das falhas de Deus e como o homem não conseguia entendê-lo. Era isso que era a tal da Filosofia?

No dia seguinte assisti ao seminário dela sobre O Nome da Rosa me sentindo o tal. Não boiei tanto e lembro de até ter a empáfia de fazer perguntas. Nascia em mim o verme do esnobismo intelectual.

*

Fizeram o filme de O Nome da Rosa. Todos do colégio fomos assistir. Naquela época ou íamos ao cinema, ver o que estivesse passando, ou ficávamos de castigo assistindo ao Chacrinha. Pra alguns, que tinham suas chacretes preferidas, nem era castigo.

Duas horas depois de franciscanos versus beneditinos, saímos do filme em choque. Menos pelos peitos da Valentina Vargas, mais por descobrirmos que estudávamos no colégio dos vilões do filme.

– Putz, esses beneditinos são filhos da puta há muito tempo- chegamos à conclusão entre um chicken mcnugget e outro.
– Pois, é. O filme é medieval mas retrata igualzinho o que a gente vive hoje.
– Isso. Vivemos num labirinto de livros perseguidos por monges pervertidos.
– É.
– É.
– É.
– Não. Não. Não.
– Como assim, não?
– Vocês não entenderam nada. Não somos os franciscanos. Nós somos os beneditinos.

E no silêncio da concordância nos descobrimos como os vilões que ainda somos.

*

Meu sócio estava recebendo a sobrinha da namorada australiana  para passar o Réveillon no Rio. Quando ela cansou de praia, Cristo, botequim e Pão de Açúcar, ele me ligou pedindo ajuda:

– A menina diz que gosta de ler. Traz uma porra desses teus pockets em inglês aí pra ela.

Coisa difícil escolher livros pros outros. Especialmente para quem não se conhece.
Depois de duas horas de considerações, me decidi: O Pêndulo de Foucault.

Entreguei o livro pra menina. Dois dias depois, durante um almoço no trabalho, o meu sócio me devolve o livro.

– Uau, ela já leu?
– Nada. Nem chegou na página 10. Falou que era baboseira intelectual. Sabe como é? Australiana.

Fui vencido pelo anti-intelectualismo anglo saxão.

*

Quarta de cinzas. Um dos meus amigos de colégio me chama prum churrasco na sua casa. O resto da galera fura e sem ter muito o que fazer além de tomar cerveja e comer carne, acabamos passando a revista na biblioteca dele. Numa das estantes mais altas, uma cópia de O Nome da Rosa.

– Putz. É teu?
– Não. Alguém deixou aqui.
– Lembra do filme?
– Lembro. Lembro. Filme bom. Livro meeerda.
– Mas e o…
– Os peitos da Valentina Vargas?
– Não. O lance de descobrirmos que éramos os vilões do filme.
– Ah, isso. Esquece. Hoje em dia não dá pra ficar assumindo esse tipo de símbolo em público.

*

Umberto Eco morreu. Lembro que comprei O Número Zero e ainda não li. Assim que amanhecer vou procurar nas estantes. Vejo o quanto a minha casa se tornou um pequeno mosteiro beneditino. Labirintos de livros e armadilhas para os incautos em busca do saber/prazer. O quanto disso se deve a ele? Ou o quanto disso eu atribuo a ele?

Os símbolos, no fim da história, não parecem ter sentido na medida em que eles só se justificam pelo poder que tem de nos tornar símbolos para nós mesmos. Como os monges lambemos livros envenenados em busca de algo que não está lá. Vivemos em cidades cenográficas que fingimos ser reais.

Enquanto digito essas palavras numa extensão para o Chrome que simula o som de uma máquina de escrever, recebo um e-mail do EReaderIQ  avisando que o Cemitério de Praga está em promoção na Amazon. O e-book. Algo que Umberto Eco tanto odiava. Será um sinal de que ele, como ideia, está finalmente morto? Ou será que apenas estou transformando essa serendipidade em mais um símbolo vazio?

Compro o livro. Os símbolos e os signos que cuidem dos seus próprios significados.

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