Todo dia, logo depois do almoço, eu recebo uma notificação do Google Fotos para eu não esquecer de lembrar de algo que eu acho que eu deveria ter esquecido. É um vídeo mal filmado, ou uma foto mal tirada, totalmente fora do seu contexto, que deveria, imagino, evocar alguma emoção positiva. Se era isso o que almejavam, o fracasso foi total.
Tudo o que sinto normalmente é um misto entre tédio e surpresa, que me faz suspirar um pouco mais pesado do que um e-mail de alguém me convidado para fazer parte de sua rede profissional no LinkedIn. Mas, em respeito a memória do que vivi, ou revivi, e às pessoas ali retratadas, preciso ter alguma reação positiva. Assim, com um claro propósito de vingança, compartilho com todos os envolvidos a lembrança que eu deveria ter esquecido mas que, agora, os demais deverão lembrar também.
A memória, que deveria ser algo evocado entre chás e madeleines, ou entre chopes e batatas fritas, se tornou uma espécie de obrigação da qual queremos esquecer mas não podemos. Também, depois de 20 anos de redes sociais, lembra do Orkut?, e de termos criado o costume de entregar nossas lembranças na mão de grandes corporações na promessa de receber algum carinho, e manter alguma relação com aqueles que já estavam ao nosso lado, todas essas memórias se tornaram um fardo grande demais para carregar.
Em vez de servir para nos tornar pessoas diferentes, o recordar de nossas experiências se tornou um complicador para essa mudança. Invés de vivermos, lembrarmos, aprendermos e seguirmos em frente, hoje vivemos, lembramos, lembramos de novo, e chegamos à inequívoca conclusão que é impossível sermos diferente do que já, e sempre, somos, ou fomos. A internet, as redes sociais, os serviços de streaming, e os registros ininterruptos de nossas vidas tornaram o eterno retorno nietzschiano um ciclo quase diário.
O meu medo é que essas lembranças um dia se tornem tudo que temos, e substituam a nossa capacidade de ter novas experiências. Isso meio que já acontece nas artes. Consegue listar mais de 10 músicas que tenha conhecido e curtido depois dos seus 18 anos? Consegue listar algum filme que você goste e não tenha reassistido mais do que 10 vezes? Consegue lembrar de algo que deveria ter esquecido mas simplesmente é impossível não deixar de lembrar?
Isso tem um nome, e não é memória, é trauma. Vivemos hoje num constante estado de stress pós traumático, antes reservado para os que passaram por guerras e grandes catástrofes, mas hoje experienciado por quem não consegue se esquecer da vez em que o Brasil apanhou de 7 a 1 da Alemanha; da vez em que (alguém? você?) foi barrada no show da Xuxa; da vez em que viu pela milésima vez uma nova versão, exatamente igual às outras, da origem do Batman, do Homem Aranha, ou de qualquer outro herói que sofre reboot de 5 em 5 anos; ou da vez que em que o Google Fotos mandou mais uma vez uma mesma foto igual a todas as outras pra te lembrar de não esquecer de sentir aquele mesmo velho sentimento de tédio e surpresa do qual já cansamos de lembrar.
Mas talvez eu esteja apenas exagerando. Então, desculpa, e esquece de tudo o que eu disse. Quer dizer, se é que isso é possível.
Por falar nisso, você lembra da última vez que esqueceu? Do que foi? Lembra? Eu não. Eu esqueci.
Caramba, gente, já ia quase esquecendo da despedida, mas acabou que esqueci que a newsletter se chama Porque hoje é Sábado e a enviei na sexta.
Então, não sejam como eu, e não esqueçam de esquecer de tudo o que não cansam de te lembrar. E bom feriadão.
Até o próximo sábado, isso é, se eu lembrar de não me esquecer.