Como antecipado pelas piadas que passei 2024 contando sobre mim mesmo, virei o ano em Paquetá. O objetivo, meio que inconsciente, era testar a teoria, desacreditada pela minha analista, de que era possível viver em uma ilha. Enchi ela tanto com essa fantasia que, toda vez que eu trazia esse assunto na análise, ela fazia pouco das minhas ambições isolacionistas:
— Nah!, você vai se aborrecer rapidinho em Paquetá.
Ela, como antecipado, novamente, pelas piadas que passei 2024 contando sobre mim mesmo, estava certa e errada.
Certa, pois ninguém vive numa ilha sem a presença, negativa ou positiva, do continente. O que nos torna ilhéus, natos, por escolha, por acaso, ou degredados, é justamente a existência de um outro espaço do qual não fazemos parte, um continente. Quem vive numa ilha não se justifica pela ilha mas pela sua relação com esse outro, real ou imaginado, que lhe serve de espelho ou contraponto. De certa forma, é, assim, impossível viver numa ilha, se a sua vida sempre serve a um outro lugar em que você não está. Esse sentimento é tão forte que eu mesmo, dois dias depois de saltar da barca, numa expectativa louca de ganhar na megasena e nunca mais voltar, compartilhava sem parar a minha angústia com a família:
— Jesus, como vou ter saúde mental pra ir ao continente resgatar o prêmio na Caixa Econômica?
Por continente eu me referia o Rio de Janeiro, distante da ilha apenas 50 minutos de passeio numa barca que sai de duas em duas horas. Deu pra sentir o drama? Mesmo morando numa ilha, eu nunca iria abandonar completamente o outro.
Agora, a minha analista também estava errada, pois seria totalmente viável eu morar na ilha, afinal, mesmo fincado no continente, eu, você, todos nós já vivemos em ilhas. Ilhas que se estendem por quilômetros, mas ao mesmo tempo tem a largura de metros; ilhas rodeadas de água indistinta por todos os lados, nos mantendo náufragos em nossas parcas relações e nas nossas próprias subjetividades, enquanto acreditamos, como um Robinson Crusoe, saber o que é melhor tanto para a ilha quanto para o continente que abandonamos ou que nos abandonou. Então, se já vivemos em ilhas, por que temos, ou talvez só eu tenha, essa loucura por abandonar o continente?
Nesse movimento de autoexílio, ou de se atirar ao mar, por saber, como Jonas, na imortal música de Sá, Zé Rodrix, e Guarabyra, que a Baleia é mais segura que um grande navio, o mais importante não é o destino, a origem, ou o meio de viagem, mas, sim, a motivação.
Abandonamos as nossas ilhas, travestidas de continentes, por outras ilhas, concretas ou metafóricas, por dois principais motivos: negar a aventura, ou mudar de ilha.
A negação da aventura, que foi o caso de Jonas, é compreensível. As aventuras que nos oferecem ou nas quais nos metemos em nome da sobrevivência são muito difíceis de lidar. Quem pode dizer que a Baleia não seria um lugar mais confortável do que essas buscas terceirizadas em que nos encontramos? E as aventuras que realmente nos falam ao coração, apesar de terem o nosso afeto, são caras demais para arriscarmos fracassar.
Já a mudança de ilha tem a ver menos com o espaço físico do que com as pessoas, e os conceitos com os quais queremos conviver. Cada ilha tem uma maneira de propor relacionamentos, lidar com valores, e contar o tempo. O espaço físico e tudo que o cerca é apenas um reflexo dessas diferentes histórias que se contam sobre o que o lugar é, de onde ele veio, e qual o seu propósito. Mesmo que essas histórias não sejam explícitas, pode crer, elas estão lá, servindo de suporte a tudo que existe. E o confronto entre quem você é agora, um produto da sua ilha atual, e essa nova ilha te permite ver, como numa peça de teatro, qual o papel você quer ou está a representar. Óbvio que, em Paquetá, os conflitos que tenho atualmente com meus papéis se tornaram ainda mais evidentes.
Em relação ao tempo, a ilha me surpreendeu por trabalhar explicitamente num ciclo longo de duas horas contado pela chegada e partida das barcas. Além disso, ela se gaba de não contar o tempo, o que ficou claro na quantidade de memorabilia e mídia morta abandonada pelas ruas e comércios, e pelos relógios analógicos insistentemente atrasados ou literalmente parados, dependurados em residências e comércios.
Em relação aos valores, sejam eles financeiros ou pessoais, fui apresentado a um lugar tão permissivo às idiossincrasias que cada espaço dava liberdade aos moradores de se colocarem, seja criando suas próprias moedas ou transformando qualquer espaço público num lugar digno do lado escuro da Lua.
Quando voltei ao continente, quer dizer ao Rio, já não tinha tanta certeza se Paquetá é o meu destino ou se valia abandonar minha ilha atual. Porém, voltei com a certeza que a minha relação com o tempo e com os que dele querem dispor precisa mudar, e que cheguei num ponto da minha vida onde quero me ver mais refletido no ambiente em que habito. Se vou fazer isso aqui, ou se vou sair em busca de um lugar mais amigável a esses propósitos, é uma questão a ser respondida posteriormente, mas é bom saber que Paquetá está aí, pronta a me fornecer um horizonte para refletir sobre os destinos que às (ou muitas) vezes se escondem dentro de mim.
Um Feliz 2025 cheio de novos destinos para todos nós.