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Avôhai

Minha filha acorda na madrugada com as peripécias dos gatos. Na sua ansiedade de isolamento, acha que é alguém mexendo na porta da casa. Até é, mas são os gatos, e na porta do banheiro. Tento colocar ela pra dormir, mas ela se nega. Sem sono, explica.

– E se eu te contar uma história?
– Tá bom, mas tem que ser uma história do vovô.

Uma história do avô. Um avô que morreu 12 anos antes de ela nascer. Um avô que ela só conheceu por pedaços de histórias e meia dúzia de fotos que viu na casa da avó.

Eu tento pescar, na enorme quantidade de suas histórias imorais e impublicáveis, alguma que seja adequada para crianças. O melhor que consigo é falar sobre os seus campeonatos de arroto, de quando nos envolvia em trotes fingindo ser um programa de perguntas e respostas da rádio, ou de quando abraçava pessoas que não conhecia na rua.

Ela ri. Mesmo publicáveis, suas histórias não são nada morais e muito menos adequadas para crianças. Imagino que pudesse mentir e contar histórias que nunca aconteceram, como tantas que ele me contou jurando ser verdade, mas tenho quase certeza que ela, tão ligada ao avô perdido, me pegaria no ato. A impressão é que ela o conhece melhor do que eu. O que não é tão difícil.

No meio do relato sobre uma vez que ele fez um senhor ir buscar um prêmio inexistente numa rádio inventada, percebo que ela dormiu. Eu a cubro e tento dormir, lembrando das histórias do meu pai. São tantas que elas pulam sobre cercas como ovelhas impulsionadas por jatos. Resultado? Insônia. As histórias são boas. Tanto que toda vez que alguém ouve uma delas, sempre me diz a mesma coisa:

-Você tinha que escrever sobre o seu pai.

Um amigo pra me motivar, inclusive me fez ler o Quase Memória do Cony, com o qual eu tinha o maior preconceito, mas do qual gostei muito. Mesmo tendo considerado um super livro, ao final só conseguia pensar: as histórias do meu pai são melhores. Metido, eu sei.

Confesso que já escrevi algumas de suas histórias em crônicas separadas e tentei criar uma estrutura pra juntar tudo num romance. Mas a minha impressão é que, quando coloca-las definitivamente no papel, perderei algo. É besteira, mas é uma sensação de luto maior do que a que senti quando ele partiu fisicamente. É como se, depois disso, eu fosse proibido de comentar sobre ele, pois, afinal de contas, já está tudo escrito.

Eu sei que é besteira e preciso cumprir essa missão, para que pelo menos a minha filha conheça as histórias do avô que nunca encontrou mas com o qual parece ter uma afinidade quase espiritual. E, um dia, quando tiver seus filhos, ela possa contar as histórias do bisavô para acalentá-los e ativar a rebeldia galhofeira que corre em nosso sangue, graças ao seu velho, invisível e indivisível Avôhai.

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