Ensaios

O país e o museu do (não) amanhã

Ontem, pela primeira vez em 10 meses, uma pessoa que não é da família entrou aqui em casa.

Desde o início da pandemia, os canos do banheiro já estavam reclamando da idade e nos incomodando pelas madrugadas com gemidos espectrais e suores noturnos. Ontem, criei coragem, ou fiquei incomodado o suficiente com as infiltrações, para acionar o seguro residencial.

Como marcado, o bombeiro hidráulico chegou às 10 da manhã. Abri a porta temeroso, mas ele entrou aqui em casa como se estivesse no filme Outbreak. Protetores nos sapatos, luvas, máscara, face shield. Nós, daqui, seguimos protocolo similar. Na ordem de serviço já estava descrito o problema e assim nem precisamos nos falar. Ou quase:

– O banheiro?- ele pediu a indicação.
– Por alí- respondi.

Ele seguiu decidido como um cirurgião. Da sala ouvíamos os barulhos dos canos sendo batidos, trocados, mexidos. Mas não tínhamos coragem de ir lá. Da sala a gente gritava de 15 em 15 minutos:

– Tudo bem?
– Tudo. Tô quase terminando.

Não estava. Duas horas e meia depois ele passou pela sala, pediu um copo de água, balançou a cabeça pra informar que estava tudo resolvido e se preparou pra partir. Na porta, me disse:

– Você sabe que tudo o que fiz aqui foi só uma gambiarra… não sabe?
– Como assim?
– O problema nos canos vai voltar. Esse prédio está podre por dentro. Não tem como resolver. Se eu fosse você, mudava daqui.
– Do apartamento?
– É. E do país. É, talvez seja melhor mudar do país. Ele está podre também.

Fui obrigado a concordar. Fechei a porta, higienizamos o caminho que ele fez, lavamos o copo que ele usou, e demos um banho de álcool 70% no banheiro.

– Posso tirar a máscara, agora, pai?- minha filha pediu.
– Acho que sim. Acho que sim.

*

Ontem, pela primeira vez em 10 meses, fomos a uma (quase) aglomeração.

Estamos estranhamente de férias, mas trancados em casa. Continuamos agindo como se fosse tudo normal, ou, melhor, o normal da pandemia. De máscara e respeitando o distanciamento social, vamos ao supermercado, andamos de bicicleta na praça por meia hora quando o sol permite, mas é só isso. O resto do tempo passamos mesmo enclausurados, o que não é lá muito saudável pra mim, nem pra uma criança de 6 anos. Ontem, depois de diversos pedidos, atendi ao desejo da minha filha e a levei ao Museu do Amanhã.

O Museu está cumprindo diversas medidas de segurança. Todos os ingressos são digitais e comprados por hora para reduzir a circulação de pessoas. Mesmo assim sempre fica a sensação de que estamos correndo risco, um grande risco.

Graças a Deus, chegamos ao Museu e ele estava quase vazio. Poucas pessoas circulavam pela mesma exposição de sempre. Aquela exposição que fala do futuro. Porém, hoje em dia, esse futuro não faz mais sentido. Discutir um crescimento exponencial da economia no meio da maior recessão da história ou vislumbrar uma humanidade colaborativa ou a conquista do espaço enquanto somos governados por psicopatas negacionistas, se não é anacrônico, é um deboche.

– Deviam trocar a exposição, papai- minha filha sugeriu.
– Por que, querida?
– O mundo não é mais assim.

O mundo não é, nem vai ser, mais assim.

*

Ontem, pela primeira vez em 10 meses, não tive mais dúvidas que não haverá amanhã.

Óbvio, eu já desconfiava. Há tempos. Mas ontem, impactado por mais um sem número de rajadas de mentiras oficiais,  pelo cruel nascisismo da mediocridade que nos “governa, e pelo literal sufocamento do nosso povo, não tive mais dúvidas: não haverá amanhã.

O país do futuro, como o museu do amanhã, nunca se concretizou, nem nunca se concretizará. Se tornou apenas as ruínas do que poderia ter sido. As ruínas cuidadosamente orquestradas por um povo que escolheu a morte e o ódio no lugar do amor e da esperança.

E mesmo que consigamos nos livrar dessa repulsiva figura que nos desgoverna, não se engane, não há volta. Nós não merecemos mais ter um país. Pelas mais variadas razões. Uns não o merecem por ter apoiado ou continuar apoiando esse genocida; outros, por terem se omitido; outros por responderem a tudo com inúteis notas de repúdio; e todos nós não o merecemos por não termos feito o suficiente pela nossa coletividade que definha. E, por essa nossa falta, toda a geração dos nossos filhos pagará, e caro. Demais.

E o que seria suficiente, minha filha? Sinceramente, não sei, amor. Você me permite pensar um pouco? Será que o papai pode lhe responder amanhã? Oh, desculpa, eu sei, amanhã é tarde demais.

Infelizmente, vamos ficar lhe devendo essa resposta e esse amanhã. Desculpe, minha querida, mais uma vez por não termos feito o suficiente, seja ele o que for…

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