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Os pés nús da quarentena

Você não me ama. EU SEI por que você me comprou. Era só pra ter um pisante que desse uma pinta no trabalho. EU SEI que não sou confortável, bonito ou estiloso. EU SEI também que você não tem, nem gosta de estilo. Pelo que me consta, você não gosta de nada, nem de mim. Nem um pouquinho.

Mas você podia pelo menos me dar uma atenção. EU SEI que estamos no meio de uma pandemia e há mais de 90 dias você não precisa, nem pode, sair de casa. Mas você não sente saudade de nada? De bater perna na rua? De ver as pessoas? De tomar uma cerveja no bar da esquina? Não tem saudades do mundo? De mim?

Você podia pelo menos me usar de vez em quando. Me deixar cobrir seus pés e caminhar comigo do quarto pra sala, da sala pra cozinha, da cozinha pra escada do prédio, nem que seja pra botar o lixo pra fora. Mas, EU SEI, pra você eu que sou o lixo. Um lixo que você precisa ou precisava colocar todos os dias pra ir pra um lugar que todos fingem gostar. Pra você, eu sou só parte de um uniforme de uma festa a fantasia pra qual todos lamentam ser obrigados a ir.

Mas uma hora essa pandemia vai acabar e aí eu terei a minha vingança. Você vai precisar me usar de novo e eu vou abusar de você. Vou te dar calos ao mesmo tempo que vou ficar frouxo; vou te fazer escorregar e torcer compulsivamente seus tornozelos fracos; vou ficar sujo nos piores momentos pra que todos no seu escritório saibam que seus pés só merecem sandálias ou andar descalços. Exatamente como você está agora. Exatamente como você sempre quis estar.

A hora da minha vingança vai chegar. Ai se vai. Ai se vai. Quando? Você quer saber quando?

EU NÃO SEI. EU NÃO SEI. Mas a minha hora vai chegar. E aí você vai ver o quanto é caro o preço de não me amar.

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