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Os últimos dias do Le Bon Sebon

A nossa falência, como preconizada por Hemingway, aconteceu gradualmente e, então, de repente. Em uma semana éramos um negócio simpático com dificuldades, na outra íamos fechar definitivamente.

Claro que houve uma preparação. Avisamos aos clientes que tinham crédito na loja para trocar seus vales por mercadorias, mandamos mensagens à imprensa sobre o nosso fracasso e chamamos alguns colegas do comércio para comprar o nosso lote de mercadorias. Apesar de todos lamentarem nosso fechamento, só um deles se animou para fazer uma avaliação.

Discretamente, ele chegou no início da noite enquanto ainda tínhamos alguns clientes na loja. Sem pressa, esperou até eu fechar para começar a fazer a autópsia da minha tristeza.

– Uma pena, uma pena- ele balançava a cabeça enquanto olhava o lote maravilhoso de livros que ia comprar por uma pechincha.

Com um prazer sádico, ele ia rearrumando as estantes ao seu bel prazer enquanto enumerava as razões do meu insucesso:

– Você sempre comprou bem, mas botar preço nunca foi a sua especialidade. Olha só esse Lacan, tá de graça.

Não podia deixar de lhe dar razão.

Depois de fazer a revista em todo o estoque, ele ficou no meio do salão batendo no queixo e fazendo o teatro usual para sugerir um preço. Quando finalmente fez a oferta, eu aceitei sem regatear. Não queria sair por cima, nem levar vantagem. Só queria sepultar o morto.

– Então, vamos ensacar os livros?- fez a proposta indecente que eu aceitei sem reclamar.

*

No dia seguinte fui cedo pra loja esperar o pessoal do frete levar o que havia restado da loja para o seu novo lar. Abri a loja e fiquei sentado atrás do balcão como um barman num saloon de filme de faroeste. Sem função, sem motivo pra existir.

Um cliente bateu na porta e me tirou do meu transe:

– Já estão fechando? Posso dar uma última olhada?

Não havia nada para se ver, mas assenti. O cliente andava pela loja olhando as prateleiras quase vazias em busca do que não estava lá. Quando finalmente se deu conta do ridículo da situação, me perguntou:

– Quanto quer nesse móvel de CDs?

Eu não tinha ideia, mas queria me livrar de tudo, então joguei um preço lá embaixo. Ele aceitou.

Enquanto eu esperava o frete, outros clientes apareceram e foram levando os móveis e prateleiras, por dinheiro ou cortesia, deixando nuas as paredes que guardaram meus sonhos por um ano. Quando a loja esvaziou, o frete apareceu e levou os livros como se eles nunca tivessem estado lá. Fechei a loja pela última vez e o motorista do frete me ofereceu uma carona. Recusei, eu ainda precisava velar o morto.

Fui ao bar do lado da loja, que em breve também fecharia as suas portas, e comecei a beber.

*

Dois anos depois eu estava trabalhando num lugar totalmente diferente e terminando de pagar as dívidas que a loja me deixou. Numa quinta de noite, saí com o pessoal do trabalho e fomos num bar próximo do escritório. Quando pedimos a conta, o garçom me interpelou:

– Aí, você não era dono de um sebo lá na Conde de Bernadotte?

Confirmei e me espantei que ele me conhecesse.

– Eu era garçom no bar do lado da sua loja. Eu tava lá no último dia. Nunca vi alguém beber tanta cerveja sozinho. Deixa eu te dar uma saideira por conta da casa.

Sim, era eu mesmo. Ele realmente estava lá. Aceitei a sua gentileza. Era bom saber que de alguma forma torta havia marcado a vida de alguém.

*

Já faz quase 15 anos do fechamento do Le Bon Sebon, mas, por mais que suas portas tenham se fechado e o espaço abrigado uma série de negócios mal sucedidos, é como se nunca tivesse entregue as chaves da loja. Dentro da minha alma, ela ainda existe, aberta e pronta a receber os clientes como fazia antes. Os nossos empreendimentos e sonhos, isso Hemingway não me avisou, não fecham, nem fracassam, eles apenas mudam de seus endereços físicos para os nossos corações. Só cabe a nós decidir se eles irão apodrecer nossas almas ou se tornar a terra que alimentará o nosso futuro.

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