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Reencontros na estrada

A primeira vez que o encontrei foi nas páginas do Círculo do Livro. Todo mês o rapaz ia lá em casa levar a revista da vez e trazer os livros que a gente tinha encomendado no mês passado. Não tenho certeza até hoje se o Círculo do Livro funcionava assim. Acho que o vendedor queria mesmo era conversar. Ele era estudante de Letras e a minha mãe, professora de Filosofia, batia altos papos com ele. Eu, do alto dos meus 12 anos, tentava acompanhar. Não conseguia, mas também não fazia feio.

Minha mãe escolhia os livros dela e me deixava escolher uns pra mim. Depois de ter completado a coleção do Monteiro Lobato, do Sherlock Holmes, e enveredado pela ficção científica, queria algo diferente; por mais idiota que isso possa parecer, eu queria algo mais adulto. E lá estava você: um livro clássico, considerado obsceno quando foi lançado, escrito num arroubo de espontaneidade, poesia e vida. Pelo menos era o que dizia na revista. Escolhi você.

Quando você chegou no mês seguinte, passei por cima da sua capa dura e enfrentei suas mais de 500 páginas de fluxo de consciência num misto de espanto e tesão. A vida que queria pra mim estava alí: liberdade, aventura, amizade, existencialismo, tristeza e decepção. Mirei em algo adulto e acertei na adolescência pura. A vida, enfim, não te dá o que você quer, mas o que você precisa.

Fiquei tão empolgado que lhe recomendei e lhe emprestei a todos que podia. Meu amor era tão grande que você se perdeu nesse meu movimento de cantar a nossa paixão. Foi-se.

Poucos anos depois estava na faculdade, fazendo um curso sem propósito, e, durante uma das minhas longas caminhadas no centro da cidade vazio dos fins de semana, nos revimos. Eu, cheio de ansiedades e dúvidas, você, plácido, sobre uma lona no chão, sendo vendido por um cara que com certeza não sabia o seu valor. Quis comprá-lo na hora, mas não tinha dinheiro.

– Você guarda ele pra mim?- implorei ao dublê de livreiro.
– Guardo, mas volta logo.

Peguei o metrô, cheguei em casa, pedi dinheiro aos meus pais e em menos de meia hora estava de volta para comprá-lo.

– Deu sorte, é um livro raro- o dublê de livreiro me disse enquanto o colocava numa sacola de supermercado.

Eu sabia. Talvez o livreiro não fosse tão dublê assim.

Eu o reli uma, duas, inúmeras vezes. Mandava cartões postais a amigos distantes tentando imitar a sua prosa e reclamando por não estar vivendo nas estradas.

Um dia encontrei um grupo de pessoas que o apreciavam e chegamos a planejar uma viagem aos moldes das que você descreve. Dei com os burros n’água. Um a um, os possíveis companheiros de viagem foram desistindo. Reclamei disso com outros amigos e, veja só, acabamos indo do Rio ao Piauí de carro numa viagem memorável que me transformou tanto quanto você. Considerei que a nossa missão estava cumprida e assentei.

Deixei de ser um jovem adulto e comecei a fazer força para deixar para trás a minha adolescência. Um erro. Tive alegrias e tristezas, altos e baixos. Num deles fui obrigado a vender minha biblioteca e você foi junto. Chorei, mas sabia que ia lhe reencontrar. Aconteceu.

As mesmas pessoas que compraram meus livros se tornaram meus sócios, abrimos uma livraria e, um dia, durante uma compra de livros, lá estava você. Descumpri os nossos regulamentos e o comprei para mim. Não iria fazer tanta diferença para a minha livraria. Naquela época você já tivera diversas novas edições, inclusive em pocket, e a sua raridade, enquanto publicação, tinha ficado pra trás. Porém você continuava raro e especial. Pelo menos para mim.

Mais uma vez o reli e, durante esse novo momento, um amigo se matou. Você me fez repensar a minha vida e se tinha acertado em tentar me tornar adulto. O problema, cheguei à conclusão, não era ser adulto, mas como ser “adulto”. Vendi a minha parte da livraria, abri um novo negócio, me casei e mais uma vez você me acompanhou.

Nesses quase 20 anos, esbarramos várias vezes e você foi amarelando junto com muitos dos meus sonhos. Outro dia, angustiado com o país, com a rotina, com a vida e com a pandemia, me perguntei onde você estava e não o encontrei. Talvez eu o tenha emprestado, talvez você tenha criado pernas e partido pelas estradas sozinho, mas, tenho certeza, quando precisar sair numa nova jornada, você irá aparecer e me acompanhar. Hoje, repensando novamente o que fazer e para onde seguir, sinto que a hora do nosso reencontro está chegando. Será hoje? As estantes e as estradas nos esperam.

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