Tive duas oportunidades, meio sem querer, de conhecer boa parte do Brasil.
A primeira foi por ingenuidade.
Eu tinha 20 anos, relia compulsivamente On The Road desde os 17, e, espremido entre a adolescência e a fase adulta, e paralisado pela falta de perspectiva que os anos 90 e a minha faculdade eternamente em greve me geravam, eu só queria ir embora. Pra onde? Não sei. Eu não tinha um plano. Podia ser pros anos 40/50, pra rota 66, pra qualquer lugar. Como eu disse, foi in-ge-nu-i-da-de.
Guardei durante um semestre 800 reais e combinei com uma colega de faculdade que em janeiro de 1996 iríamos rumar para a Rodoviária Novo Rio e pular no primeiro ônibus que estivesse pra sair. Faríamos o mesmo nos demais destinos até o dinheiro acabar. Um sonho. Ela consentiu, eu acreditei, e na hora H, ou quase, ela pulou fora. Como disse, in-ge-nu-i-da-de.
Frustrado, comentei com uns amigos dos planos furados e um deles, que tinha carro e carteira de motorista, mesmo que vencida, se prontificou a participar da aventura. Outros dois que também nada tinham a fazer naquele verão se apresentaram e completaram a tripulação. E lá fomos nós quatro, num Uno, sem uma carteira de motorista válida, do Rio ao Piauí e de volta em um mês e um dia. O motorista se tornou nosso desafeto, um dos tripulantes ficou no Piauí, e o outro se tornou padrinho da minha filha.
Sem precisar entrar em detalhes, foi uma viagem que mudou a minha existência. Mas bastou. Me tornei uma nova pessoa, terminei a faculdade, comecei a trabalhar, abri 3 empresas, e me tornei, aos trancos e barrancos, adulto. Era hora de ficar em casa, no Rio, de onde não saí, pelos próximos 10 anos.
Aí veio a segunda oportunidade. Saindo de uma falência humilhante e complicada, fui obrigado aos meus trinta e poucos anos a trabalhar pela primeira vez de carteira assinada. Parecia um garoto velho obrigado a colocar calças curtas e voltar pra escola. Mas não foi ruim.
Uma das minhas primeiras tarefas foi dividir um roteiro de treinamento pelo Brasil com um colega. Ele dividiu a missão irmãmente:
– Pra ninguém ficar sobrecarregado, vamos pegar cada um o mesmo número de cidades. Aqui, ó, eu vou pra Salvador, você vai pra Açu. Eu vou pra Recife, você pra Coari. Eu pego as cidades na linha verde do Nordeste e você faz o ABCD paulista. Combinado?
– Combinado.
Era um sujeito generoso. Mesmo que não intencionalmente.
Graças a essa divisão, conheci o sertão, os pampas, as cidades industriais paulistas, andei de canoa pelo rio Amazonas, visitei as cidades petrolíferas do litoral do sudeste, os estaleiros do sul do país, e as minas de Minas e os portos no norte. Fiz amigos, conheci novas realidades e, com orgulho, fiz a minha parte pra melhorar um pouco o país.
Durante 8 anos, nessa e numa outra empresa, fazia trajetos loucos e conduzia treinamentos e reuniões de troca de conhecimento nos mais distantes rincões do Brasil. Enquanto uns iam pra Vienna, apresentar trabalhos acadêmicos baseados nos meus esforços, eu não me incomodava de trabalhar durante feriados em Ourilândia. Sou um sujeito humilde, mas um pouquinho ressentido. Deu pra notar?
Depois dessa loucura, mais uma vez cresci e aquietei. Virei os 40, tivemos a nossa filha e voltamos pro lugar de onde viemos.
Agora, olhando o futuro através da nesga de céu que a janela da casa que o meu pai me deixou permite, não vejo horizontes para esse país que eu desbravei.
Nunca fui fã da bandeira ou da camisa de futebol, mas hoje tenho nojo do significado que os grupos fascistas lhe impuseram. Nunca acreditei em políticos profissionais, nem em partidos, afinal política se faz na mesa de bar, mas toda vez que vejo menção ao nome Brasil ou alguém cantarolando o hino dá vontade sair do recinto.
A apropriação messiânica desta terra, que nunca teve a ambição de fazer sentido ou ter um propósito, a tornou inóspita. O Brasil era, foi, pra mim, um lugar de descoberta, de alegria, de crescimento, de emoção, de maturidade, de trabalho, de surpresa e de introspecção. Agora, esse país, do qual pessoas cheias de ódio falam nas ruas e na TV, se tornou o pretexto para a opressão e para o genocídio de quem o tornava melhor justamente por não fazer nada por ele. No melhor estilo taoísta, o caminho dessa terra era muito melhor quando não havia destino. A sua melhor missão era simplesmente (não) ser.
Agora que Aldir Blanc morreu, impossível não lembrar que o “Brazil não conhece o Brasil”. Nem eu, que andei pacas por ele, o conheço. Quem dirá esses sujeitos gananciosos e mal intencionados buzinando pelo direito de passar o fim de semana em Miami às custas do trabalho e das vidas alheias, dentro de caminhonetes importadas balançando bandeiras verde amarelas made in China?
E, assim, em respeito a memória desse Brasil que definha, eu penso que essa ideia insistentemente nascedoura de Brazil deveria morrer também. Vamos rachar a terra, separar tudo isso, antes que as lembranças dela se tornem amargas e fatais demais.
Vamos viver em nossos condados, e lembrar, sem saudades de quando essa terra era uma só, e sem alimentar as falsas esperanças de um rei Artur que venha reuni-la mais uma vez.
Vamos, após o isolamento social, voltar aos botequins e discutir uma ideia de país, ou melhor, de países sem messianismos ou destinos manifestos. A ideia de um conjunto de terras diversas e amigas, uma nação nem melhor, nem pior, mas, como o Salgueiro, apenas diferente. Sob vários deuses e acima de ninguém. Assim, como o Brasil já foi e não é mais.
Bye, bye, Brasil. A última ficha caiu.