Ficção

Passagem só de ida para Pasárgada

Um dia vou fechar essas portas pra sempre. Pra nunca mais voltar. Mas não farei alarde. Sairei daqui como se nunca fosse partir, como se nunca tivesse vindo pra cá.

Quando esse dia chegar, pela última vez, acordarei de madrugada, cansado, mas sem conseguir voltar a dormir. Me esgueirarei, na ponta dos pés, do quarto para a sala, carregando um cobertor quente demais para o calor de todos os dias, e os livros que quero ler mas não tenho paz de espírito pra terminar. Gritarei em silêncio, pedindo socorro, pedindo ajuda, pedindo, pelo amor de Deus, que mais um dia, como tantos outros, não amanheça.

Quando o sol nascer, só pra me contrariar, comerei granola com banana e leite, em pé na cozinha, como se fosse um dia normal de prisão. Preocupado com a saúde física que nunca possuí, colocarei uma bermuda e uma camiseta, e descerei as escadas me equilibrando nos seus degraus estreitos e nos meus quadris tortos.

Na portaria, darei bom dia à senhora insone que aguarda, sentada no banco do jardim, rolando a tela do celular, por uma surpresa que nunca virá. E, assim, ante a minha presença, a porta de ferro do prédio, como mágica, se abrirá.

Atravessarei a praça desviando da massa de sem tetos, esperando em fila, no coreto, pelo pão distribuído pelos movimentos sociais, e me esconderei da tropa de idosos se despedindo, na frente do chafariz, das suas articulações com complexos movimentos de yôga. Na frente do supermercado driblarei os jatos de água das mangueiras e os desastrados entregadores jogando suas caixas de mantimentos sobre mim.

Enfim, na academia, discutirei novelas velhas e problemas novos com as companhias no Pilates que insistem em insistir que tudo já foi melhor, mesmo afirmando que o passado foi pior. Finda a minha força vital, voltarei para a casa lamentando que não tenha ainda adquirido a forma física necessária para fugir correndo do trabalho que finjo (e finge me) amar.

Em casa, me arrumarei para representar (mal) o papel que esperam que eu represente no trabalho. No trabalho, sonharei com o dia em que não precisarei mais dele para representar o papel que esperam de mim em casa. Em casa, de volta, vencerei o cansaço para me cansar de ter esperanças. E assim perco, num suspiro ofegante, metade de um dia.

Vencido, na frente do meu laptop, jogarei minhas esperanças em cursos (úteis e inúteis), livros (lidos ou escritos), contatos (vivos e esquecidos), projetos (paralelos ou diagonais); em basicamente qualquer coisa (real ou imaginária) que prometa me tirar daqui. Perdido, na frente do meu laptop, meu rosto desesperado irá refletir toda a fúria que nesse dia, espero, finalmente, irá me tirar daqui.

Aos poucos, todos em casa, todos no prédio, todos na rua, todos na cidade irão dormir, e, enfim, eu poderei acordar. Sem provisões ou bagagem, correrei pelo Aterro vazio até a estação das Barcas em busca de meu novo lar.

Sem passagem ou uma embarcação que me leve para Pasárgada, com Paquetá vou me contentar. Todos a bordo, a barca estará só me esperando para partir.

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