(Ainda) Vale Tudo?

Um dos papos mais recorrentes no Pilates é o remake de Vale Tudo. Não é surpresa que mais de metade das nossas discussões são sobre comparações entre a novela original e a atual, e, óbvio, transitam entre antagonismos irresolvíveis e consensos indiscutíveis.

No campo das unanimidades, não há dúvidas, por exemplo, que ambas as Odetes são ótimas, apesar de a atual ter deixado de ser uma vilã clássica e virar uma fada sensata torta, mais por conta da chatice dos personagens que a cercam do que por concordância ideológica; outra coisa inquestionável é a falta de habilidade da Paola Oliveira em fazer uma Heleninha decente. Um desastre tão grande que com certeza faria a Heleninha de 1989 correr atrás de uma garrafa para esquecer essa mágoa.

Já nas discordâncias, o grupo não consegue concordar sobre qual Raquel é pior (meu voto é na Regina Duarte, por várias razões in e out obra); e principalmente não há consenso na pertinência da criação de um remake. Alguns dizem que o momento político pede, pois, afinal, ainda vale perguntar se no país “Vale Tudo”, enquanto outros consideram que uma obra surgida num Brasil de 35 anos atrás não consegue ser transposta para os dias de hoje.

Raquel e Maria de Fátima no remake e na versão original de 'Vale Tudo' - Foto: Globo/ Fábio Rocha; Globo / Divulgação

Mais do que 35 anos de transformações sociais as separam

Nesse ponto específico, me encontro entre essas duas posições. Enquanto considero que deveríamos continuar a nos perguntar se “Vale Tudo”, acho que o contexto atual do país demanda muitas mudanças na novela para que ela realmente faça sentido.

A “Vale Tudo” original trata de um país saindo de uma ditadura, e perdido entre um futuro de próspera liberdade, que não se concretizou, e os vícios de corrupção e autoritarismo do passado. No universo de outrora, a luta das pessoas comuns (Ivan, Raquel etc.) contra as elites que ainda são herdeiras de um passado oligárquico (Odete, Marco Aurélio etc.) é a tônica do conflito social brasileiro.

Hoje, o contexto é bem diferente. Ao invés de estarmos saindo de uma ditadura, estamos lutando para não voltar para uma. A elite continua a mesma, mas estava há anos se escondendo atrás de uma pauta falsamente progressista para agradar acionistas e fazer propagandas hipócritas. Porém, com um país mais polarizado, essa máscara cai. Libertos da necessidade de esconder suas reais intenções, os vilões acabariam surpreendendo os mocinhos que, ingenuamente, por anos poderiam ter considerado eles seus aliados.

As relações, tanto de poder quanto emocionais, entre os personagens seriam diferentes, assim como a conclusão da história. Enquanto na primeira Marco Aurélio foge do Brasil cheio de dinheiro, nessa para que ele precisaria fugir? Era bem capaz de se tornar político, coach picareta, ou, quem sabe?, os dois.

A impressão é que, nesse ínterim, entre as duas versões, tanto o país como o nosso estado de espírito mudaram muito. Se antes havia esperança na dúvida de se realmente “Vale Tudo”, hoje a desesperança se alimenta da certeza de que, sim, “Vale Tudo”. E somos nós, que mesmo sem dinheiro, queremos fugir como o Marco Aurélio de um país que não nos acolhe mais. Talvez, uma das decisões mais importantes que deveriam ter tomado na novela de hoje seria trocar o tema “Brasil” por algo mais representativo da aceitação debochada da nossa realidade. Que tal “Vale Tudo” de Tim Maia e Sandra de Sá?

No Pilates, todos concordamos que a pertinência do tema da novela é indiscutível, mas a teia de relações sociais do país mudou e  impactou as ambições de seus participantes. A novela não pode, assim, permanecer com o mesmo plot, nem com os mesmos arcos. Ah, e ninguém me convence que Bella Campos não poderia ser uma influencer trambiqueira por conta própria, sem precisar recorrer ao golpe do baú. Já a pobre da Maria de Fátima original, que nunca poderia ser modelo, apesar de toda a maldade, merece pelo menos um pouquinho da nossa afeição. Seja como for, se há algo que transcende todos os gaps sociais e históricos no Brasil é a malandragem.

Mas isso é papo para a próxima sessão de Pilates.

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