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Fatores ocultos

-Então, qual é a sua defesa?
-Defesa?
-É, o que você tem para argumentar que justifique o que fez? Que fator levou você a agir como agiu?
-Fator?
-É, qual foi o fator que o motivou a fazer o que fez? Você pelo menos sabe que estava errado?
-Errado?
-Claro, errado. Por isso eu preciso da sua justificativa. Explicações não bastam. Preciso saber o que motivou o seu comportamento, não explicações post facto. Tudo o que você disser tem que ser apenas ipso facto. Fatores objetivos! Objetivos!
-Fatores? Post Facto? Ipso Facto? Não estou entendo nada. Eu nem sabia que estava errado.
-Não? Impossível. É tão óbvio! Como você pode não saber que estava errado?
-Sério, não sei. Pra dizer a verdade, não sei nem de qual facto, ipso, post, whatever, que você está falando.
-Que absurdo! Você faz o que faz, e tem a cara dura que não compartilhar ao menos um fator que o tenha motivado, ao menos uma explicação…
-Não era justificativa?
-Isso, justificativa… justificativa para o que fez. E agora vem me dizer que nem sabe do que estou falando.
-Isso. Exatamente, isso. Não tenho a menor ideia do que você está falando.
-Que absurdo! Que absurdo!
-Me desculpa, mas posso fazer uma pergunta?
-Você, totalmente errado, ainda me vem com pedidos?
-Desculpa, mas acho que, dentre tantos fatores, esse vai ser um dos fatores mais importantes nessa discussão.
-Tá bom! Que remédio? Pode fazer a sua pergunta, pode fazer.
-Você sabe do que está falando?
-Como assim?
-Você sabe o facto, quer dizer, o fato em que agi errado e gerou esse mal estar todo?
-Eu…
-Você sabe? Sabe?
-Bom, quer dizer, eu não sei, mas tenho certeza que alguém sabe.
-E quem sabe?
-O quê?
-Você pelo menos sabe quem sabe?
-Bom, não… mas posso verificar pra você. Mas o que isso tem a ver com fato de você estar errado? Como isso pode ser um fator importante nessa discussão?
-Talvez nem seja, mas, você não pode negar, esse desconhecimento sobre o tal fato não deixa de ser, sim, o fator mais interessante de toda a nossa discussão….
-(…)
-Então…
-Tá, fato! Esse fato, sim, pode ser um fator…

REC

Como era inevitável ser vigiada…

…na saída de casa, ficava no canto direito da parte de trás do elevador para ser refletida no espelho convexo de corpo inteiro.

… na ida e na volta do trabalho, esperava pelo metrô nos cantos das plataformas, onde tinha certeza que apareceria nas telas de vigilância.

…na hora do almoço, quando via uma matéria sendo gravada nas ruas, passava discreta e lentamente ao fundo para aumentar as chances de ser vista na televisão.

…nas postagens de celebridades lamentando a morte de outros famosos, fazia esforço para ser a primeira se compadecendo e desejando força a enlutados que não conhecia.

…nos eventos do trabalho, sempre se sentava nas primeiras cadeiras, dava declarações de apoio à empresa, e iniciava as palmas de pé para os gerentes.

…na pós graduação, era uma das poucas a manter a câmera aberta durante toda a aula e a parabenizar os professores pelo seu conhecimento.

Como todos nós, nos espelhos, câmeras, e telas, era presença constante e assídua. Porém, ao contrário de nós, o fazia ansiosa e deliberadamente.

Mas…

…quando fechava os olhos para dormir, e não conseguia ver nada, nem a si mesma, se perguntava como era possível que mesmo abrindo mão tão fervorosamente da privacidade que não tinha, ninguém a visse.

Talvez por isso…

…quando sonhava, sempre estava sozinha e sempre era invisível.

Talvez por isso…

…quando acordava, assim continuava por mais que clamasse por uma atenção que desejava merecer e nunca receberia.

Como todos nós, era apenas mais uma prisioneira ao mesmo tempo ostensivamente desprezada e vigiada.

Como todos nós, era apenas mais uma figurante num mundo com deficit de atenção.

Como todos nós, não era ninguém; como todos nós, não era nenhuma de nós.

Fim da Gravação.


Fala, eu!

E aí?
Diz aí!
O que mudou nesse ano?

Resolvemos a questão do
inter
mi

vel
Inven

rio?
Conseguimos a grana que
esperávamos e
mudamos pra Pá
quetá?

Falando de grana…
a vida financeira está mais sê
gura e
nos deu a
paz de espírito necessária pra criar?
Estamos fazendo
com calma
a transição profissional que
queríamos?
Estamos in
vestindo
o nosso tempo
cada vez mais
nas coisas que amamos e menos
naquelas que costumam nos aborrecer?
Estamos cuidando da fá
mília
como ela merece
sem descuidar de
nós?

E você?
Está bem?

liz?
Cercado de pessoas que a
ma,
dos livros que gos
ta,
dos jogos que te
divertem, e
cheio de satisfa
ção com o que pró
fessa e
faz?

Ah, e,
não posso esquecer,
já parou com aquela mania chá
ta de falar
usando o plu
ral
magés
tico?
Isso,
sim, achamos de
matar…

Seja como for,
esteja como es
tivermos,
pode crer,
estou torcendo por
vo
cê.

Se melhoramos,
para
béns.
Se ainda não chegamos
lá,
calma,
já, já vai
me
lhorar.
Posso não ter fé,
mas tenho crença,
e con
fiança.
O que mais podia pe
dir?

Abraços de seu
maior fã,
eu

Demarcação

Quando, por conta de reveses da vida, perdeu (quase) tudo, ainda lhe sobrou espaço. E algum tempo. O tempo planejava usar para aumentar o espaço que tinha disponível e, assim, esperava, o espaço lhe conferiria mais tempo.

Resolveu começar por uma das duas mesas de ferro que o botequim colocava na calçada. Como tinha tempo, por menor que fosse, se esforçava para chegar quando o botequim estivesse abrindo, para poder clamar a mesa para si, sem disputa.

Para cada mesa havia duas cadeiras, mas ele só tinha uma bunda, o que tornava a cadeira extra da sua mesa um risco de ver seu espaço, se não tomado, compartilhado. Por isso, toda vez que alguém se aproximava, ele prontamente convidava a pessoa para sentar. Podia não parecer nada, mas esse gesto tornava a mesa sua, e ele, um anfitrião.

Com o tempo que tinha, as pessoas começaram a aceitar o seu convite e a ouvir suas histórias, dispondo para ele dos seus próprios tempos. Esse contato com as pessoas fez com o que seu tempo gerasse juros e dividendos. Quanto mais pessoas aceitavam o convite para se sentar em sua mesa e falar com ele, mais tempo ele tinha. Em breve a quantidade de pessoas aumentou, o que demandou o uso da segunda mesa, e ele passou a dominar todo o espaço do lado de fora do botequim. Para tomar o botequim inteiro foi um pulo. Um belo dia, ele ouviu alguém falar algo que comprovou que o terreno tinha se tornado seu:

-Vamos lá no bar do Fulano.

O Fulano era ele, e o bar, enfim, era seu.

Em pouco tempo, ele, que tinha (quase) nada, tinha um bar, o tempo das pessoas e, dentro em pouco, também conseguiu tomar posse da praça próxima ao bar. As pessoas, sem esforço ou direcionamento, passaram a nomear os elementos dos arredores com o seu nome- o barbeiro do Fulano, a banca do Fulano, a farmácia do Fulano- e, em breve, tudo que a sua (curta) vista alcançava, se tornou seu. Ao contrário de Alexandre, o Grande, ele não chorou; pelo contrário, ele riu, riu, riu, de se fartar. E sua risada atraiu mais pessoas que dispuseram mais de seus tempos consolidando, assim, ainda mais o seu espaço.

Porém o tempo se deprecia muito mais rápido que o espaço, e o seu, um dia, como acontecerá com o de todos, acabou. Informalmente botaram o seu nome na praça e, algumas décadas depois, um vereador, que um dia foi um menino, que jogava bola na praça e para quem ele pagava uma coca depois das peladas, colocou seu nome oficialmente no espaço, agora, devidamente, demarcado. Outros poderiam cravar bandeiras pelo solo, mas no mundo das ideias aquele espaço seria eternamente seu. A que coisa melhor ele poderia ter dedicado o seu tempo do que ao seu espaço?

O improviso combinado

Não se conheciam, nem de vista, nem pessoalmente, mas, como acertado pelo whatsapp, eles se esbarrariam no edifício Avenida Central, subsolo, na praça de alimentação, em frente ao caixa eletrônico, na quarta-feira, às 12:32.

Ela, de óculos escuros e echarpe vermelha, iria em direção ao caixa 24 horas e tropeçaria. Ele, que estaria sentando numa mesa próxima, com uma sacola da livraria Leonardo da Vinci, correria para ajudá-la a se levantar. Óbvio, as pessoas em volta iriam tentar se envolver. Ele as afastaria. Com educação. Teria tudo sob controle. Ela, por outro lado, teria dificuldade para caminhar e ele a levaria no colo até o ponto de taxi na esquina da Rio Branco com a Nilo Peçanha.

No taxi, ele perguntaria seu endereço, mas ela desmaiaria. Aturdido, ele pediria para o taxista rumar para o seu próprio endereço. Ao chegar ao seu prédio, ele a levaria desacordada, no colo, até o seu apartamento. Ele a deitaria na sua cama e aplicaria uma compressa gelada no seu tornozelo. Isso a acordaria. Grata, mas assustada com a sua audácia, ela tentaria ir embora. Mas, no caminho até a porta, ela descobriria o quanto tinham em comum e se renderia ao seu charme. Se beijariam ardentemente e, em pouco tempo, se deitariam no chão da sala para celebrar essa paixão repentina que começou com um simples e inesperado torcer de tornozelo no centro do Rio.

No horário e no local combinado, tudo teve início como esperado. Eles cumpriram seus papéis com maestria. E, na viagem de taxi, até o motorista deu um toque de humor ao seu teatro mezzo improvisado, mezzo roteirizado. No apartamento, o diálogo, não preparado, correu de forma inteligente e provocadora, o que aumentou a excitação que antecedeu a conjunção carnal.

Quando tudo terminou, ambos, estranhamente satisfeitos, como se tudo tivesse ocorrido de maneira espontânea, se perguntaram, e se, por um engano e por uma coincidência, não estariam com as pessoas erradas. Se o teatro combinado não fosse uma combinação, mas um movimento orgânico de se apaixonar? Se tudo tivesse começado como uma farsa, mas fosse real? E se fosse paixão? Ou, pior, e se fosse amor?

Preferiram não pensar nisso. Fecharam os olhos e, se entregando ao cansaço do gozo, dormiram agraciados pelo prazer que seus artifícios lhes proporcionaram e ainda poderiam lhes proporcionar. Não havia razão para se preocuparem. O amor verdadeiro, eles sabiam, não passava de uma fraude consensual.