Ensaios

Qual é o porquê de tanto porquê?

Não me ajudou muito na vida ter uma mãe existencialista que estudava filosofia, um pai galhofeiro que não tinha respeito por nenhuma instituição estabelecida e estudar num colégio católico de disciplina rígida. Para dizer a verdade, não só não ajudou como complicou muito.

Enquanto todos os alunos, desde a mais tenra idade, baixavam a cabeça para as ordens e os dogmas, eu os questionava. Até os 10 anos isso era considerado bonitinho. O pior que faziam era passar a mão na minha cabeça e dizer: “Que menino revoltado, hein?”. Desmereciam minhas reclamações e observações e continuavam com a ladainha que, hoje desconfio, nem eles mesmos acreditavam.

Quando fiz 10 anos a situação complicou um pouco. Eu já não era só um menino revoltado. Estava me tornando um pré adolescente questionador e perigoso. Para complicar um pouco a situação, minha educação na época estava sob o comando do melhor exemplo do proselitismo e nepotismo: minha professora de matemática era a filha fanática religiosa e recém formada do diretor do colégio.

Do alto da sua inexperiência e da sua insegurança, ela fazia tudo o que podia para reafirmar a autoridade institucional que de fato não tinha. E tudo em nome de uma filosofia corporativa na qual ela ainda estava aprendendo a acreditar. Broncas, humilhações, excesso de dever de casa, idas à sala do seu pai, anotações na caderneta. Valia de tudo para manter a ordem sem propósito que esconderia a sua incompetência. Não preciso dizer como isso foi difícil pra mim.

Contudo, no fim do primeiro semestre da minha quarta série essa história deu uma virada. Durante um domingo tedioso, encontrei na biblioteca de casa uma cópia comemorativa dos 20 anos dos direitos das crianças. Fiquei fascinado com aquilo. Tinha nas mãos a arma definitiva contra a minha professora. Dos 10 artigos, dois me serviam em especial: o 1o. e o 10o.

1° Todas as crianças têm o direito à vida e à liberdade.
10° Todas as crianças tem direito de não serem violentadas verbalmente ou serem agredidas por pais, avós, parentes, ou até a sociedade.

Para mim, era claro que tudo o que ela fazia violava esses dois artigos. E em prol de quê? Para que ela pudesse fazer parte de uma instituição que não a reconhecia? Para que usasse o poder institucional e resolver questões pessoais? Não, isso não estava certo.

Botei o livro na mochila e fui pro colégio esperando seu primeiro deslize. Ela entrou na sala de aula, discretamente tirei o livro da mochila e o coloquei sob a carteira como um assassino de aluguel emboscando sua vítima. Esperando. Como não podia deixar de ser, nessa segunda feira ela estava particularmente calma e educada. Maldita, aposto que deve ter tido um fim de semana muito bom pensando no nosso sofrimento, vociferei mentalmente. Ela deu alguns escorregões durante a aula mas nada que me auxiliasse a conseguir o impacto que esperava gerar. Continuei aguardando pacientemente. Quase no fim da aula, quando ela começou a gritar com os poucos alunos que reclamaram da lista enorme de dever de casa que ela acabara de passar, eu agi:

– Professora, me desculpe, mas a senhora está indo contra dois artigos dos direitos das crianças.
– Direitos das crianças?- ela se espantou.
– Isso mesmo! Direito das crianças. O excesso de dever nos tira a liberdade e a sua postura nos violenta e agride verbalmente.

Ela nem pensou duas vezes. Quase aos pontapés me expulsou da sala e me botou pra falar com o pai dela.

Depois de uma interminável espera de 5 minutos na secretaria, o velho diretor, sujeito sábio mas vendido ao sistema, me mandou entrar em sua sala. Sentei na cadeira em frente a sua mesa, enquanto ele fingia não me notar. Bati as mãos no uniforme, limpando a metafórica poeira que me cobria depois dessa queda moral. Ele abaixou os óculos, olhou pra mim cansado e sorriu amarelo:

– O que foi dessa vez, seu Lisandro?
– Bom, seu diretor, eu sei que ela é sua filha, mas, convenhamos, a maneira como ela age não…
– O que está te incomodando de verdade?
– Bom, ela está ferindo dois artigos dos direitos…
– Vamos parar com esse bom pra cá, bom pra lá?
– Tá bom. Quer dizer, bom. Quer dizer, OK.
– Agora que tenho a sua atenção, me responda, seu Lisandro: por que diabos você torna a vida de todos os professores um inferno?

Sinceramente nunca tinha pensado sobre isso ou sob esse ângulo. Na minha opinião estava apenas exercendo meus direitos. Não aceitava que ninguém mandasse em mim. No meu narcisismo infantil nada fazia mais sentido do que agir assim. Mesmo sem saber o que dizer, tentei responder:

– Não sei. Talvez não goste que as pessoas mandem em mim. Estou apenas lutando pela liberdade de fazer o que eu quero- completei.
– Isso é estranho- o diretor argumentou.- Se fosse assim mesmo, as suas notas deveriam ser ruins e não são. Afinal, o que o COLÉGIO te pede é estudar e ter boas notas. E é exatamente o que você faz. Pra dizer a verdade, você, excetuando esse problema de com-por-ta-men-to pouco usual,  você é um dos melhores alunos da sua sala. Não é, mesmo?
– Sou- não pude negar.
– Então, por que você age assim?

Eu não tinha uma razão clara. Eu não odiava o colégio, muito pelo contrário; eu amava o colégio; não odiava estudar, novamente, muito pelo contrário; enquanto todos corriam para as quadras no recreio eu me enfurnava na biblioteca; e nem achava que a professora fosse tão ruim assim; havia piores, isso eu sabia. Mas a maneira de ela agir, a falta de propósito, a falta de esclarecer o porquê das coisas, isso tudo me corroía por dentro. Eu queria um mundo que fizesse sentido e no qual houvesse diálogo. Nada disso ocorria no meu mundo.

– Então, seu Lisandro. Por que você age assim?
– Sei lá. Só queria saber o porquê das coisas.
– O porquê das coisas?
– É. Não acho justo que mandem a gente fazer tanto dever ou estudar coisas que pareçam inúteis simplesmente “porque sim”. As coisas devem ter uma razão de ser, não?

O diretor riu baixinho, levantou da sua cadeira e me conduziu até a porta da sala:

– Seu Lisandro, pra ser sincero com você nem sempre as coisas tem razão de ser…
– Mas…
– Pode ficar tranquilo. Volte pra sua sala que eu vejo o que posso fazer.

Voltei pra sala cabisbaixo. Entrei e me encaminhei envergonhado até a minha cadeira sob o escárnio quase inaudível dos colegas. A professora continuou a sua aula, como se nada houvesse acontecido. Resignado, abri o meu caderno e comecei a copiar a matéria. Um pequeno papel dobrado foi jogado por um colega incógnito na minha carteira. Abri e nele havia apenas uma palavra escrita em vermelho: COMUNISTA.

*

No dia seguinte entrei na sala e notei que o diretor conversava com a sua filha no corredor. Eles tentavam mas não conseguiam evitar de olhar pra mim. Se pudessem, acredito, até apontariam.

Os alunos se acomodaram na sala de aula e a professora entrou. Como sempre, todos ficaram em silêncio, por conta do medo que normalmente sentiam. A professora suspirou, rodou o olhar pela sala, fazendo uma pequena e quase imperceptível pausa em mim. Olhou para seus sapatos e, franzindo os lábios, começou a aula:

– Não sei exatamente como vocês se sentem a respeito disso mas achei interessante deixar claro por que estamos aprendendo determinadas matérias em matemática. Atualmente tudo pode parecer sem sentido mas vocês vão crescer e muitas dessas coisas serão úteis no futuro. Isso vale para os deveres que passarei também. Para os que não acreditam em mim, saibam que vou, agora, antes de começar qualquer matéria nova, explicar pra quê ela serve e onde é aplicada. OK? Vamos começar fazendo isso sobre a próxima matéria.

E assim ela fez. A turma ficou em silêncio sem entender o que estava acontecendo. Eu fiquei de boca aberta.

Saí da aula com um misto de espanto e alívio. Finalmente eu ia começar saber o porquê das coisas, quer dizer, de pelo menos algumas poucas coisas. Mas, depois de explicada a razão de algumas delas, vou confessar, preferia ter ficado sem saber. Nem sempre a razão de ser é interessante ou motivadora. Por outro lado, me senti respeitado. Descobri que tinha o direito de saber o porquê dos outros serem como são e agirem como agem. Tinha chegado talvez ao máximo de verdade que alguém pode chegar. O que eu podia querer mais?

Saí do colégio e olhei para a janela da sala do diretor, agradecendo. Fosse isso um filme, o diretor passaria pela janela e piscaria para mim,reforçando a minha busca ao mesmo tempo fútil e indispensável pelo porquê. Mas não passou. Por quê? Não tenho idéia. Essa devia ser mais uma dessas coisas, como o diretor disse, que existiam sem ter um porquê na vida.

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