Não consigo parar de pensar que o bafafá entre a abertura da economia e o distanciamento social para nos proteger da pandemia é um conflito entre duas diferentes concepções vindas da reforma dos modernos estados nacionais.
O modelo de governo que temos atualmente e as idelogias que governam a nossa dita vida comunal se devem muito a duas revoluções do século XVIII que aconteceram bem próximas: a americana e a francesa. Apesar de estarem relacionados conceitualmente e inclusive terem pontos de convergência, seus lemas explicitam uma grande diferença nas expectativas de comportamento dos cidadãos. Enquanto a revolução francesa pregava a liberdade, igualdade e fraternidade, a americana garantia como foco principal o direito à busca da felicidade.
Num momento de crise, como agora, esses dois conceitos, que até podem co-existir em condições normais, deixam claras as suas diferenças. Enquanto o francês reforça o benefício do grupo e a isonomia entre os cidadãos, o americano pode ser encarado como uma permissão para a ação com foco nas necessidades e anseios dos indivíduos.
Hoje estava discutindo com um amigo sobre a questão e caí na real que não há uma resposta rápida e fácil para esse conflito. O que ficou da nossa conversa é que até dá pra conviver com essa dualidade, mas em determinadas circunstâncias a balança pode, e deve, pender para um lado ou para o outro. A busca da felicidade é mais adequada a momentos de pujança e a fraternidade cai bem nas crises. Porém, se olharmos com atenção, boa parte dos problemas que sofremos hoje são devidos aos excessos cometidos pela busca da felicidade: hiperconsumismo, aquecimento global, desigualdade, crise energética. Inclusive, se a gente tivesse desde os anos 90 trabalhado na parte da igualdade e da fraternidade, essa quarentena ia passar de boa.
Talvez a dificuldade das pessoas esteja em encarar a questão circunstancial como uma afronta ao que acreditam ser a sua identidade. É a velha teoria de encarar a política como time de futebol. Eu sou pró fraternidade versus Eu sou pró busca da felicidade. Ceder a visões diferentes da sua por conta de necessidades não significa que você esteja indo contra seus valores nem que a mudança prum lado ou pro outro irá permanecer indefinidamente. O medo de contrariar sua opinião é considerar que é melhor errar sozinho pelos motivos “corretos” do que acertar junto com base em ideias alheias; enfim, uma bruta besteira.
Pra piorar eu ainda poderia lembrar que a sua identidade é uma ficção construída a milhares de mãos e, quanto às teorias conspiratórias de como o ficará quando tudo terminar, como dizia o Dr. Manhattan, nada termina.
Mas isso é outra história.