Nunca soube jogar tarot direito. Eu entendia a história (presumida) do baralho, a origem dos símbolos, o significado dos arcanos, a lógica das suas relações e frequentemente tinha poderosas intuições estimuladas pelas cartas e sua disposição; mas me faltava um troço essencial: mise-en-scène.
Comecei a estudar Tarot depois que uma amiga da minha mãe tirou as cartas pra mim num domingo quente de verão. Sem muita cerimônia, na mesa da nossa sala, acompanhada de um caderninho, daqueles de jogo do bicho, ela ia tirando cartas, fazendo comentários e anotações como quem tenta resolver um problema matemático. Isso fazia parte do seu mise-en-scène. Ela era taróloga, estudante de filosofia e física teórica de formação.
Estimulado por aquela experiência, comprei uma revista de Tarot na banca de jornal que vinha com um baralho destacável. Nada menos glamouroso ou místico. A minha falta de jeito inclusive me fez danificar o fundo da carta do Eremita, o que estimulava algumas pessoas a evitá-la por temer, sem razão, seu significado.
Com o que eu pescava de revistas, livros e treinava com aquele baralhinho do Tarot de Marselha de papelão, eu ia tirando cartas pra mim e pra quem pedisse. Em cima de camas, em escrivaninhas, em bancos de praça, no curso de inglês e até nas mesas do finado Mr. Pizza do Largo do Machado. Qualquer lugar era lugar, qualquer hora era hora. Pra mim não fazia diferença, mas eu sentia que as pessoas se incomodavam. Faltava pra elas uma espécie de teatro pra mostrar que havia um grande mistério no que eu fazia. Pra elas faltava o mise-en-scène.
Por conta do Tarot, conheci uma família só de mulheres que tirava baralho cigano e comecei a estudar as cartas com elas. Na primeira vez que tiraram cartas pra mim a matriarca falou pra filha:
– Não esquece de cobrar dele.
Eu não entendi. Costumava tirar tarot sem cobrar pra ninguém e logo elas, aquelas mulheres que considerava minhas amigas, queriam cobrar de mim, como se fossem videntes trambiqueiras da rua do Catete? Questionei e a filha da matriarca explicou:
– Calma. É só uma questão de energia e desprendimento. Quando passo a energia pra você através das cartas, essa energia tem que passar de volta pra mim, por exemplo, na forma de dinheiro. E se você me paga eu não sou mais só uma amiga torcendo pelo seu futuro. Eu estou livre para falar o que eu de fato vir nas cartas e o que você deve ouvir. Tipo uma psicóloga. Entendeu?
Entendi. Fazia sentido de fato. Era parte do seu mise-en-scène. Ela e os consulentes precisavam daquilo para estabelecer uma relação especial e criar uma sensação diferente naquele momento mágico. O mise-en-scène era o custo da entrada num mundo além do real. Convencido pelos seus argumentos, paguei e ouvi ela prever o meu futuro.
Hoje, décadas depois de entender essa realidade, vou ter uma consulta de tarot online via whatsapp, e senti falta do mise-en-scène que nunca consegui fazer. Senti falta das salas escuras, das toalhas de mesa vermelhas, dos espelhos e velas, do cheiro de incenso e cigarro. Senti falta do mise-en-scène das trambiqueiras do Catete que só de olhar pra gente sabiam que sofríamos de amor não correspondido e que se vangloriavam de prever que os novos moradores de uma cobertura teriam problemas de infiltração. Senti falta do teatro. Senti falta de pagar o preço para entrar nesse outro mundo.
O que me parece é que, hoje, por conta do isolamento social, não tem mais mise-en-scène. Em quase nada. Os processos psicoterápicos, que, até bem pouco tempo, seguiam protocolos próximos aos de uma consulta de tarot, não tem mais setting e são realizados online. Os rituais corporativos passaram a ser realizados por pessoas mudas sem rostos em volta de telas projetando slides sem sentindo. E até os aniversários que, nas salas de videoconferência, tentam reproduzir as condições presenciais de alegria e excitação falham miseravelmente com seus “Parabéns para você” dessincronizados.
Quando falamos das questões místicas é pior. Não subimos mais montanhas para falar com oráculos mascarados nem visitamos florestas escuras nas sextas à noite para falar com bruxas debruçadas sobre seus caldeirões. Até para o que é fora do real, vivemos uma cultura pragmática e sem mistérios.
Mas talvez eu esteja exagerando. Talvez ainda haja mise-en-scène. Só ainda não o entendemos, pois ele é novo e está sendo construído em novos ambientes e em outros formatos. Por isso ainda não reconhecemos seus símbolos. O mistério sempre existe. Talvez hoje seja apenas diferente. Só nos basta acreditar.
Vamos, então, de coração aberto, ver qual mistério essa consulta ao futuro via whastapp, que encontrei no Instagram e foi paga via pix, irá me esclarecer.