Antes aqui não tinha nada. Agora tem tudo. Mas, pensando bem, isso tudo já existia antes, só nos faltava o tempo de esperar esse sonho florescer.
Lembro quando chegamos a esse terreno vazio, nessa pequena cidade costeira, e vimos, por cima do mato e do vazio insistente, tudo que há agora. Talvez não exatamente o que acabamos construindo com vidro, pedra, madeira e metal, mas o mesmo conceito espiritual está aqui.
Tudo começou com a casa central. Seguindo a inspiração dos diversos livros sobre lares japoneses que li durante anos para alimentar meus sonhos, montamos uma estrutura simples e transparente. Uma casa quadrada e expansível, com fortes pilares ligados por vidros, onde a nossa privacidade, garantida por diáfanas cortinas claras, podia ser aberta ou fechada ao nosso bel prazer. Quando queremos nos recolher, as fechamos; quando queremos receber nossos amigos ou conhecer novas pessoas, elas são descortinadas progressivamente, abrindo com vagar a visão do nosso lar e o espaço dentro dos nossos corações.
Aos poucos fomos nos despindo de muitas coisas físicas mantendo apenas o essencial, para abrir espaço para o que realmente importa: nossos afetos, nossas emoções e livros, milhares deles.
Uma hora, como já era esperado, os livros precisaram da sua própria casa e a construímos no mesmo modelo da casa central: um espaço acolhedor e seletivamente transparente. Para proteger a riqueza e o conhecimento que há dentro deles, criamos proteções contra a maresia e contra o sol, dentro dos limites necessários para que a sua segurança não impedisse a sua conexão com o mundo.
Quando ficou pronta, primeiro abrimos a biblioteca à cidade. Recebemos alunos de escolas, moradores interessados ou apenas curiosos. Aos poucos, pessoas de lugares, longe ou perto, começaram a aparecer para conhecê-la, e, dependendo do nosso humor e da empatia que sentíamos, deixamos elas entrarem. Dependendo do elo que formamos com elas, podem apenas circular pelas estantes, ou ler por breves ou longos momentos nos pufes convidativos e poltronas confortáveis, ou até mesmo levar uma das obras pelas quais tenham se apaixonado. Desde que, óbvio, deixem uma outra no lugar.
Com o passar dos anos, começamos a fazer pequenos eventos, encontros, reuniões, e a transformar a cidade que começou a abrigar cineclubes espontâneos e peças de teatro clássicas, influenciadas pelas palavras da biblioteca.
Essa transformação da comunidade, como não podia deixar de ser, aumentou a nossa responsabilidade e a nossa visibilidade. Por isso construímos também um lugar para receber mais pessoas que quisessem passar mais tempo perto dos nossos livros e, quem sabe, escrever os seus ao nosso lado.
Passamos, assim, a receber pessoas que ficavam pouco ou muito tempo, e podiam devorar, além dos livros, as minhas feijoadas de sexta feira, meu café gelado, meus mistos-quentes com ovos, e meus esporádicos chilis.
Chegamos a pensar em construir uma piscina no terreno, mas a proximidade do mar a tornou supérflua, e a obra encerrou onde devia: num deck onde podíamos nos reunir para conversar, e num chuveirão para refrescar nossos ânimos e nossos corpos.
O tempo passou, nossa filha cresceu junto com a biblioteca e se mudou para seguir a vida que ela mesma escolheu. Nós a apoiamos como podemos, e adoramos recebê-la nos fins de semana e férias para nos visitar e reencontrar a biblioteca que se tornou a sua irmã de papel, vidro e metal.
Imerso nessas memórias, percebo que o sol acabou de raiar. Enquanto leio e escrevo essas linhas, faço meu café, admirando você e velando o seu sono. Coloco um ponto final nesse texto e me levanto da minha escrivaninha para abrir mais uma vez as portas dessa biblioteca preguiçosa.
Em breve os convidados também irão acordar e nos encontrar entre livros e cervejas para falar de tudo e de nada. No meio da tarde passearemos na beira mar e voltaremos para um chuveirão antes do jantar. A lua aparecerá e colocarei a biblioteca para dormir, para que ela recupere suas forças e amanhã volte a receber aqueles que aprenderão com ela a escrever novos livros que farão parte do seu crescente conhecimento.
A obra não acabou. Nunca acaba, mas estamos chegando lá. Onde? Não sei, mas estamos sempre um dia mais próximos do que ambicionamos ser e criar. E isso é o suficiente. Não é?