Na minha infância, qualquer água era mar. Até a da praia do Flamengo. Não tinha esse troço de praia imprópria, só praia arriscada. Acho que já vi até gente tomando banho na praia de Botafogo, mas pode ser viagem. Memórias fabricadas. Mas da praia do Flamengo, eu lembro. Na praia do Flamengo, eu ia.
Pequeno, mas cheio de empáfia e audácia, eu me aventurava como um explorador em busca das sereias que quase seduziram Ulisses, em busca das terras e tesouros que o mar tinha a me oferecer. A farra era tanta que eu nadava e brincava até ficar engelhado.
Quando voltava pra casa, minha mãe me preparava um banho de banheira com permanganato de potássio, pra me curar de qualquer doença que tivesse pego naquela água imunda. Devia funcionar. Talvez graças aquela água azul, eu nunca tive nada. Que eu me lembre.
Fui crescendo e passamos a ir ao Leme. Esbarrávamos com muitos turistas e em dois verões pré-adolescentes tive paixonites com paulistas que não deram em nada. Engraçado que, depois disso, abandonei o mar. E o sol. Mas não deixei de ir à praia.
Comecei a frequentar a praia de noite. Caminhava pela areia com gente esquisita pra fazer coisas não recomendáveis das quais não me orgulho. Algumas vezes cheguei até a ver o sol nascer, mas, como um vampiro, sabia que aquela era a hora de voltar pro meu esconderijo. Foram longos anos onde me privei do sol e da companhia de gente normal. Andava de calça jeans, camiseta preta e de tênis, pelas areias de Ipanema e Copacabana em busca de um lugar que não existia enquanto eu só precisava deixar o dia passar. E, depois de muito tempo, passou. Rápida e surpreendentemente como as luzes do hotel Marina acendendo.
No fim da faculdade, para acompanhar de dia gente que me acompanhava de noite, passei a ir às praias oceânicas e me entreguei mais uma vez ao mar. A princípio era apenas um pré- noite, ou prenúncio de um pernoite, mas me fez botar a cara no sol e me reencontrar.
Depois de tanto tempo no escuro, óbvio, desacostumei. Desprotegido e fraco, passei a queimar rápido e descascar profusamente. Era como se estivesse tirando da minha pele os anos de abuso que passei longe do dia e do mar. Era um banho solar, como o de permanganato de potássio que me dava a minha mãe, para me curar de uma água podre espiritual na qual eu nunca devia ter entrado.
Demorou, mas perseverei e curei. Apesar de finalmente ter feito as pazes com a praia, nunca mais a relação foi a mesma. De um audaz explorador, passei a me sentir um convidado indesejado. Não tinha mais o ímpeto de me queimar, nem a liberdade de nadar; e quando ia banhar, lembrava da minha tia, que entrava no mar comigo quando eu era pequeno, e citava Fagner para me ajudar pra perder o meu medo das ondas:
“Quem acredita em sereia sabe o segredo do mar.”
Quando eu era criança eu sabia o segredo do mar. Quando eu era criança eu acreditava em sereias. Mas eu esqueci o segredo e perdi a fé. Mas sempre é tempo de lembrar, mas sempre é tempo de voltar a ter fé.
Por isso, mesmo descrente e ignorante, quando eu volto à praia e entro no mar, humildemente, peço licença e digo baixinho:
Alodê yemanjá ê dai-me licença
E por um momento eu me sinto como uma criança esperando encontrar novamente as sereias que nunca me deixarão afogar.