Depois de abandonar a sua fantasia nostálgica e abrir mão do seu presente e do seu provável futuro, Gil Pender, alter ego de Woody Allen em Meia Noite em Paris, caminha sozinho pela noite da capital francesa. Enquanto discute consigo mesmo a respeito do que fez com sua vida, esbarra com a vendedora de discos antigos que conheceu no mercado de pulgas. Após uma pequena troca de gentilezas, a atração entre os dois se mostra clara. Bate meia noite, a hora mágica em que ele voltava no tempo. Dessa vez ele não é tragado para a sua fantasia nostálgica. Ele está vivendo uma versão dela no seu próprio presente. Sem aviso, começa a chover e, para confirmar como certa a sua escolha, a vendedora concorda com ele: é ótimo andar sob a chuva. The End. Será?
Claro que não. O corte final nos filmes de Woody Allen apenas fecha pequenos ciclos neuróticos. Como sempre, adorei o filme e tudo, mas, dessa vez, quando saí do cinema fiquei com uma certa preocupação. Algo que não me acontecia há um bom tempo. Por quê? Vamos ver se eu consigo explicar.
Nessa sua última obra, Woody Allen levanta, mais uma vez, aquele velho conflito entre a vida real e o “mundo ideal”. Ele mesmo já fez isso em um bando de filmes. Em a Rosa Púrpura do Cairo, em Bananas, em O Dorminhoco, e, em menor grau, em A Era do Radio, que era um filme mais memorialista. Frente a esse conflito comum, os filmes tendem a apresentar apenas 3 soluções para a trama:
1. A recusa do retorno, como em Algum Lugar do Passado, em que o “viajante” apaixonado pela fantasia resolve não retornar ou morre de saudades após ser expulso do seu mundo ideal, como no caso do exemplo.
2. A adequação à realidade, em que o sujeito percebe como era tola (era mesmo?) a sua fixação com o mundo ideal, que em alguns filmes é exatamente de onde ele saiu, e retorna para adequar a sua vida à “verdadeira” realidade que ele evitava ver. Coisa besta, né? O pior é que essa é a solução mais comum e só gera filmes moralistas, como o odioso O Homem de Família com o Nicolas Cage, o terror dos insones nas madrugadas.
3. E, finalmente, a volta ao presente com os instrumentos da mudança. Nesse caso, o herói aprende algo novo no mundo ideal e o utiliza para alterar o seu presente e o seu futuro. Woddy Allen escolheu a terceira opção, assim como toda a série De Volta para o Futuro. Esse é, em geral, o melhor desfecho, pois trata com respeito tanto o presente como o mundo ideal, apostando numa visão menos estática da vida e olha a fantasia como instrumento de libertação da mediocridade.
Além da escolha pelo viés da mudança, tão rara no cinema americano, o que achei de mais interessante no filme foi que a maioria dos personagens, seja de que época fossem, estava insatisfeita com o seu presente. A única exceção era a família e os amigos da noiva. Eles estavam satisfeitos com o que viviam. Apesar de muito reclamarem, eram homens e mulheres do seu tempo, viviam o presente e buscavam a confirmação do status que já possuíam. Não havia dúvidas em suas vidas. Todos os erros que encontravam no mundo eram externos a eles e seriam facilmente corrigidos se os “outros” agissem como eles. Lembrem da cena em que o “especialista em tudo” discute com a guia sobre a vida amorosa de Rodin. O real não importa. Ele estava certo pois essa é a sua realidade: estar sempre certo.
Do outro lado dessa balança, temos o pobre do personagem de Owen Wilson. Mais “errado” que ele, impossível. Bem “sucedido”, (sob os critérios de quem mesmo?), e permanentemente insatisfeito. Paralizado por esse conflito e pressionado a ser um homem do seu tempo, ao mesmo tempo que odeia o presente que lhe é apresentado. Sem saber o que fazer, ele é obrigado a buscar no passado a força que lhe falta para agir. Um verdadeiro herói clássico feito nos moldes do Monomito do Campbell.
A estrutura pode parecer simples, e é, mas o filme é maravilhoso. Como uma verdadeira comédia de situação, cujo começo e o fim são sempre previsíveis, é a construção do seu recheio que o torna memorável. A representação dos heróis dos anos 20 é imaginativa, reverente e irreverente. Coisa de mestre. Mas, confesso que, quando saí do cinema fiquei bastante preocupado como as pessoas entenderiam a resolução do filme e a fixação do protagonista pelo passado. Daí a preocupação da qual falei antes.
Será que a veriam pelo lado positivo? Como instrumento de (r)evolução pessoal? Ou achariam que se ele vivesse no presente desde sempre tudo seria melhor? Afinal, evitar problemas antes que eles aconteçam é sempre a melhor opção, certo? “Coitadinho do moço, né?” as velhinhas comentam ao seu lado no cinema. “Perdeu uma noiva tão bonita. Ele é tão bobo…”.
A questão é complicada, afinal, os gurus das auto-ajudas da vida estão sempre martelando nas revistas de negócios e nos programas femininos da tarde que viver no presente é o meio certo de viver. Será que essa ideologia do aqui e agora contaminou a interpretação da maioria dos espectadores? Ou pior, traduziu o filme para um modelo tradicionalista de aceitação do presente?
Não sei, mas vou te dizer, até concordo que é importante viver no presente. Se olhamos para o passado como fuga ao invés de inspiração, corremos o risco de sermos tão retrógrados quanto os entusiastas de “o mundo de hoje é tão lindo…”. Mas, é preciso lembrar, viver no presente é diferente de gostar do presente. Gostar do presente é lutar pela manutenção do que existe e não pela mudança. Por mais que a nostalgia envolva o risco de nos tornar preguiçosos reclamões, é só a insatisfação com o que há hoje que nos impulsiona a mudar o mundo.
Contudo, para mudar o mundo é preciso pensar em como deve ser futuro. Revolta com o mundo sem rumo para a mudança não nos tornará revolucionários, somente terroristas, como o personagem de O Agente Secreto que explode as coisas pois é contra “o que aí está”. Nesse momento de escolher o que queremos para o futuro em contraposição ao odioso presente, nada mais natural que nos voltemos ao passado como fonte de inspiração.
O engraçado é que quando buscamos essa inspiração para a mudança e glorificamos o passado, glorificamos em geral os indivíduos marginalizados das épocas de “ouro”. Sejam os americanos em Paris dos anos 20, os Beats nos anos 50, os Hippies nos anos 60 ou os Nerds dos anos 80. Não concorda? então, me diz, conhece alguém que tem nostalgia dos Yuppies? Escrevo mais uma frase pra dar tempo para você pensar. Ninguém veio a mente? Nem a mim.
O fato é que não temos nostalgia do poder. O poder não tem época e não sugere como mudar o mundo, só como mantê-lo como está. Portanto, toda nostalgia está ligada aos losers do passado. É claro que esses losers até podem se tornar os poderosos em algum ponto de sua história, mas quando isso acontece eles se tornam vítimas do seu próprio poder, alvos da nossa vergonha ou indivíduos dignos de pena. Não há revolucionário cuja reputação sobreviva ao poder. Certo, Dilma?
Bom, se sonhamos com os fracassados e os encaramos como os heróis cujo modelo devemos seguir quando pensamos em mudar o mundo, não podemos estar sonhando com a vitória de nossas revoluções, mas apenas com a intenção de fazê-las. Sério! Vê só: o povo ainda curte o Trotsky, mas não liga para Stalin e companhia que mataram tantos para manter o tal “sonho” vivo. Você sabe, não há nada mais bonito que lutar por um sonho que não iremos atingir.
Acho que é nesse ponto que o filme ganha a sua força e consegue nos emocionar. Como bom existencialista sob interminável terapia, Woody Allen simplesmente aceitou que o esforço pela mudança e o esmero quase artesanal com a identidade que críamos para nós mesmos são mais importantes do que quaisquer ambições ou destinos magníficos onde “queremos” chegar. O remédio para o absurdo da vida e para a falta de sentido, doenças crônicas da existência, é simplesmente a imaginação. E para a alimentar temos à nossa disposição toda uma gama de grandes obras e personalidades. Assim usamos o passado para nos inspirar e tomarmos as rédeas de nossas vidas, buscando sermos o mais felizes que pudermos ser. As nossas vidas se tornam, então, simples trajetos. Sem sentido, linhas de chegada ou mesmo pódiums. Apenas um caminho, sem propósito, sem certezas, mas muito divertido.
Pensando bem, não deveria me preocupar tanto. Frente a tantos filmes cheios de explosões, mortes e frases feitas, que só servem como máquinas de fazer dinheiro, Meia Noite em Paris, seja ele mal entendido pelo público ou não, é um sopro de vida num cinema cada vez menos imaginativo. Esperemos que não seja o último suspiro.
muito bom!
Ótimo, cara!
Realmente fantástico e inspirador.
Parabéns pela resenha e pelo pensamento desenvolvido.