Olha só, recentemente fiquei próximo de, ou, melhor, fui tragado para algumas discussões sobre a livre circulação de livros em formato digital, a.k.a. pirataria, e achei de bom tom explicar por que sou contrário a esse comportamento por critérios práticos e não exatamente morais ou legais.
Só pra contextualizar meu lugar de fala: como algumas pessoas sabem, fui sócio de duas livrarias, a Baratos (da Ribeiro) e o Le Bon Sebon; sou um leitor e comprador de livros contumaz, os livros empilhados pela minha casa que o digam; e hoje uma das minhas atribuições profissionais é gerenciar uma biblioteca técnica privada, mas aberta ao público, com mais de 30 mil volumes físicos e digitais. Dito isso, ninguém precisa me explicar como é importante para a cultura e o ecossistema do livro que as pessoas os comprem. Afinal, sem recursos financeiros, editoras não publicam, livrarias não conseguem manter suas portas abertas, e os tais dos livros não chegam às mãos (e aos olhos) dos leitores.
Ah, é, por falar nisso, não sei se estão cientes, mas a responsabilidade do fechamento de várias livrarias é, sim, parcialmente de quem não consome nelas para baixar em seus HD livros que nunca lerão. Esse tipo de hábito infantil e pernicioso acaba gerando um dos momentos que me dá mais raiva na vida, quando a pequena e combalida livraria de bairro fecha, como ocorreu recentemente aqui perto de casa com a Galileu, e o povo se junta em lamentos públicos pelas lojas que não frequentava. Na boa, é muito fácil ser defensor da cultura no seu velório pra pagar de bom moço.
Ah, mas os preços dos livros… Bom, sim, são/estão caros, mas posso te contar um segredo? Os preços dos livros serão cada vez mais caros quanto menos pessoas os consumirem. E, pasme, se a condição financeira for realmente um problema, não sei se lhe contaram mas tem uns lugares que vendem livros de segunda mão, chamados sebos, onde você pode comprar a preços bem mais em conta obras, muitas vezes, em excelente estado e, surpresa, em que as palavras estão na mesma ordem que nos livros novos. Isso não é genial?
Pra melhorar, talvez ainda não seja do seu conhecimento, mas ainda inventaram um outro lugar incrível onde você pode ir, ler e levar livros pra casa gratuitamente. Como é o nome mesmo? Ah, Bibliotecas. É assim que fala? Bibliotecas? Bom, elas também não vão lá muito bem das pernas, mas sabe por quê? Porque as pessoas não as frequentam. Aí os municípios as fecham, os estados diminuem seus orçamentos, e apenas o Real Gabinete Português de Leitura parece existir, não como Biblioteca, óbvio, mas como espaço instagramável.
Ah, mas na sua cidade não tem biblioteca, nem livraria, ou você está com pressa para ler a tal obra. Sem problemas. Muitas bibliotecas são digitais e você pode acessar elas do seu IPhone, que comprou pra discutir com seu tio no whatsapp e custa basicamente o preço de uns 100 livros. Pra lhe facilitar, passo aqui o link da Biblio On, belíssima iniciativa digital do estado de São Paulo; e da Open Library do Internet Archive que permite acesso a um enorme acervo de livros, filmes e músicas legais, tanto no sentido jurídico como de qualidade. Quem diria que a Internet serviria pra acessar bibliotecas do mundo todo? Sensacional, não?
Ah, tá, mas o teu problema é ideológico. Você é contra os conglomerados monopolistas, como a Amazon. Beleza, mas alegar estar lutando contra eles, para ficar circulando PDF por aí, enquanto compra geladeiras e TVs no site, e ignora as livrarias do seu bairro, é quase a definição literal de hipocrisia. E antes que venha me falar do mercado das editoras científicas, conheça melhor a história delas antes de tentar comparar com o mercado de livros comuns. Sim, o que elas fazem é extorsão, mas só conseguem agir impunemente por mais de um século, pois a publicação de trabalhos acadêmicos, se não sabem, é um mercado para autores, que precisam evidenciar produção e ter visibilidade, e não para leitores, totalmente focado na venda de acesso a Universidades. Por falar nisso, quando foi a última vez que foi a uma biblioteca universitária, sim, muitas são abertas à comunidade, para ler trabalhos acadêmicos? Ok, vou lhe dar um tempinho pra tentar localizar na memória esse momento mágico.
Seja como for, o que eu quero dizer é: não pirateiem livros. Mas, se nem os argumentos financeiros, nem práticos, nem éticos balançaram a sua consciência, acho que não tem jeito mesmo. Então, esqueça tudo o que disse, baixe seus livros, finja que os lê, pavoneie a sua enorme biblioteca digital virgem pelas redes sociais da vida, e tenha certeza que por mais que se diga um(a) leitor(a), você não faz parte da comunidade.
Sim, você não faz parte, pois essa comunidade não é um clube de compras ou consumidores, nem um encontro de acumuladores; essa é uma comunidade de pessoas que querem trocar sobre o que leram, sobre as ideias que tiveram, sobre o que os livros lhes fizeram refletir, sentir, e amar. É uma comunidade que não termina no livro, mas que começa nele. E para acolher os encontros dessa comunidade é que precisamos manter vivos esses espaços físicos e virtuais de trocas de conhecimento, que são muito mais do que simples templos de comércio ou armazéns de secos e molhados. Esses espaços são, ou pelo menos deveriam ser, um lar fora do nosso lar. E nossos lares estão ameaçados justamente pelos hábitos imaturos e imediatistas daqueles que mais deveriam nos apoiar.
Sim, hoje, você, filho pródigo, que se afastou de nós por pura comodidade, põe em risco o próprio lugar de onde veio. Mas, se mudar de ideia, sabe onde nos encontrar e será um grande prazer lhe receber de volta ao seu lar.