O Editor Invisível

[oei#03] O caro trabalho emocional de editar

Sexta à noite, um amigo me manda uma mensagem: conseguiu 30 dias de Amazon Prime, e pede indicações de filmes para ver na plataforma. Vasculhando a minha lista no JustWatch, esbarro com Vire Cada Página: As Aventuras de Robert Caro e Robert Gottlieb, ao qual ainda não tinha assistido, mas, sem o menor temor, podia recomendar.

No sábado de manhã, seguindo minha própria indicação, quem assiste a ele sou eu. Enquanto acompanho, maravilhado e emocionado, o relato dos 50 anos de magnífico trabalho e, talvez não amizade, mas, respeito entre essas duas figuras lendárias, só martelava na minha cabeça que até então não tinha me caído a ficha do que era verdadeiramente uma relação entre autor e editor, mesmo tendo feito parte de uma. Explico.

No início de 2022, a partir do meu curso de Storytelling na Descomplica, a Dra. Andrea Boanova, uma fiscal de alimentos aposentada da vigilância sanitária e futura autora, entrou em contato comigo. Queria saber se eu poderia ajudá-la a escrever um livro de crônicas autobiográficas sobre a sua atividade profissional. Não sabia por que ela tinha me procurado, nem exatamente o que fazer, mas, sentindo uma espécie de chamado do dever, perguntei se ela já tinha algo escrito e pedi que me enviasse.

Li o material e senti que havia uma história ali, mas estava escondida num enorme fluxo de consciência típico do processo de relembrar. Peguei um dos textos, tentei dividir em todas as narrativas que o compunham, e retornei para ela com minhas observações e o pedido que as reescrevesse em crônicas separadas. Pouco tempo depois ela me enviou uma nova versão e outros detalhes e correções, antes ocultos pela falta de direcionamento inicial, começaram a surgir. Na minha cabeça, a minha atividade com ela era apenas educativa ou consultiva, mas, na verdade, mesmo que, na época, eu não tenha percebido, eu era seu editor.

Começamos a nos encontrar regularmente e virtualmente, em parte pela distância, ela estava em São Paulo e eu, no Rio, e muito por conta da pandemia, que ainda estava à nossa volta apesar da vacina. Nesses encontros discutíamos os textos já existentes; planejávamos quais seriam os próximos escritos; revisávamos e definíamos uma estrutura geral para cada história e para todo livro. Enquanto isso, íamos trocando pequenos pedaços de nossas vidas, e amadurecendo tanto o livro como a nós mesmos, como autora e editor.

Um dia o texto ficou pronto. Ou, pelo menos, decidimos que não valia mais continuar a burilar. Nesse ponto o livro começou a se materializar. Passamos a discutir as opções de publicação física e digital, e formas de divulgação; buscar indicações de ilustradores, e diagramadores; e, depois de 2 anos de trabalho em conjunto após aquele contato inicial, o livro nasceu.

Ontem, eu finalmente percebi o quanto foi, e é, mágica essa relação.

Mais do que um simples revisor ou “conselheiro” de negócios, indicando como melhor desenvolver o texto tanto estilisticamente como de forma a atingir o público alvo determinado, o editor é quase um psicanalista, buscando junto com a pessoa autora, nos sintomas que emergem de suas palavras, pela verdade que ela quer trazer à tona.

Quando o filme acabou com uma linda cena sem som em que Caro e Gottlieb se debruçavam sobre o texto inacabado do 5° volume da biografia de Lyndon Johnson, me lembrei como fiquei espantado pela vontade que a autora tinha que eu participasse do lançamento do seu livro.

Impossibilitado por questões de agenda, não pude ir à São Paulo, mas enviei um vídeo a congratulando pelo livro. Na semana anterior ao lançamento, participei de uma live onde, confesso, me senti bastante emocionado e orgulhoso  com o trabalho realizado.

Claro que o mérito era todo dela, mas eu ficava muito feliz de ter cumprido o meu papel no processo de materializar uma obra que da sua forma específica e bem particular tornou o mundo um lugar mais interessante.

Talvez, se tivesse, quando começamos a trabalhar, a noção do verdadeiro papel do editor, eu teria me envolvido ainda mais com o caro, tanto em esforço, como em carinho, trabalho emocional da edição. Afinal, tão ou mais importante que a capacidade de leitor especializado do editor, para avaliar texto, narrativa e público, é a sua crença e o investimento emocional que faz na obra. Como bem disse Gottlieb no filme, ele não lamenta os livros que “recusou” e se tornaram sucessos; se os tivesse aceito, sem acreditar neles, talvez não cumprissem o papel ao qual se destinavam. A fé e a fidelidade ao que acredita, ele me fez perceber, são duas das mais importantes qualidades que um editor pode ter.

Sábias Palavras

Caro e Gottlieb deixaram que claro que a relação entre o editor e o autor, mais que uma prestação de serviço, é uma parceria que permite à pessoa autora descobrir e acreditar na verdade que ela precisa trazer ao mundo. Obrigado doutora Boanova por ter confiado em mim para fazer parte da construção da sua obra e por ter me dado a chance de crer no seu livro e em você. O prazer e o ganho, tenha certeza, foram todos meus.

 

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