O Editor Invisível

[oei#08] A viralidade gráfica dos livros e sentimentos reproduzíveis

Dezembro de 1990.

Surge, no dia da entrega das provas finais do curso de inglês, a assustadora e sedutora possibilidade de compartilhar com o alvo de meu afeto as odes de amor que lhe dediquei. Mas como fazer isso? Como compartilhar as páginas soltas e caóticas de prosa poética, que, movido pela paixão, escrevi sobre ela?

Sim, esse era o problema: eu escrevi sobre ela e não para ela. Nunca me passou pela cabeça que seria necessário publicar, tornar público, esse meu sentimento, mesmo que o público fosse de uma pessoa só. Seria preciso pensar, planejar e produzir algo especial, algo que completasse o seu destino, algo que eu quase poderia chamar de, por que não?, um livro. Enfim, eu precisava tornar o texto algo reproduzível para que ele fosse, finalmente, além do seu autor.

Usar Xerox não seria uma boa opção. Além do custo, proibitivo para um aluno do segundo grau do século XX, a página fotocopiada tornaria os meus sentimentos repetidos e banais. Era preciso mostrar a dor, o esforço, o artesanato que simbolizaria todo o meu amor. Comprei numa papelaria no Largo do Machado um caderno interessante, porém não muito chamativo, para mostrar a beleza das simples e surpreendentes coisas que ela representava para mim.

A edição, sola e remanescente, 34 anos depois

Reproduzi, como numa espécie de diário, todos os textos, dividindo-os em partes pelas datas de criação, exibindo a evolução da minha paixão.

Reescrevi a mão todos os textos e, como detalhe, incluí um cartão grampeado à segunda capa que serviria de introdução, indicando a ela, mas fingindo que isso servia a outros, como melhor ler e aproveitar os textos que criei.

Num prazo curto, consegui deixar tudo pronto e, no dia da entrega, do meu lançamento, rumei cheio de esperança para tornar público, mesmo que seu nome não estivesse explícito em nenhum lugar, o meu amor.

Ela não apareceu.

Novembro de 1991.

O que era paixão se tornou uma desilusão, mas eu continuei escrevendo. Em vez de doces odes de amor em prosa poética, poemas curtos ultrarromânticos se tornaram a minha forma de expressão. Como miséria adora companhia, resolvi juntar os melhores, ou, quem sabe, os piores, num fanzine. Produzi uma master em papel ofício, com as ilustrações recortadas de revistas, textos datilografados numa IBM esfera e títulos desenhados à mão. Para reproduzir, dessa vez usei sem pudor a fotocopiadora do trabalho do meu pai. Se, antes, meu sentimento era raro e nobre, agora ele era baixo e barato. Cada texto merece a forma de reprodutibilidade que melhor o representa.

Fiz poucas cópias e as distribuí entre minhas professoras e professores de português, alguns amigos, na banca do Osny na esquina da Rio Branco com a rua da Assembleia, e uma delas enviei para a revista Animal. Querendo tornar pública a minha tristeza, mas não a minha identidade, não fiz uma página de créditos e ainda fiz o favor de publicar sob pseudônimo. A revista Animal destacou o meu fanzine na sua página de publicações alternativas, mas fez questão de frisar que eu queria ser divulgado, mas não queria ser encontrado.

Não estavam errados.

Setembro de 2024.

Num sebo especializado no encalhe de editoras, contemplo o mar de esforço físico, de papel e tinta, voltado a transformar em realidade os textos que os autores um dia imaginaram escrever e hoje se tornaram livros, mas não encontraram leitores. Falharam? Falharam como eu?

Não, enquanto eu não busquei a reprodutibilidade nem o reconhecimento, esses livros, como vírus analógicos carregando ideias que querem ser reproduzidas em castelos de impressão e mentes impressionáveis, compostos de miolos em preto e branco envoltos em capas coloridas, simplesmente não acharam os organismos hospedeiros adequados nos quais poderiam se replicar.

É num momento como esse em que fica clara a distância entre os universos de escrever e publicar. Sim, eles são universos distantes, mas são também cheios de pontes e escolhas que irão dar materialidade, através de linguagem e suprimentos gráficos, às mudanças que queremos ver no mundo. Desde amores não correspondidos e depressões juvenis até revoluções políticas ou culinárias. Nenhuma delas seria, nem se tornará, possível sem o momento mágico em que as ideias deixam os manuscritos e viram matrizes reproduzíveis para a sua repetição. Querem viralizar? Então, sem pudor, exercitem seus pontos finais e liguem as rotativas. Há (mais) algo (novo?) que o mundo precisa ler e conhecer. Torço para que, dessa vez, vocês sejam ouvidos, lidos e correspondidos. Como eu não fui.

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