Ficção

Boca de Urna

O Brasil pode ter mais de 150 milhões de eleitores, mas para a família Campos Pinto quem decide as eleições mesmo é o primo Gui. Desde a primeira eleição pra presidente pós ditadura, quando a família se digladiava entre o plantel de candidatos afoitos pra ser o primeiro presidente eleito de forma direta depois de décadas, ele, do alto dos seus 16 anos, desvirginou seu título e acertou na mosca quem ia ser eleito:

-Sei não, mas esse janotinha do caçador de marajás é bem capaz de levar esse lance. Vou cravar logo nele.

Se votou ou não votou, ninguém sabe, mas a mística foi criada. Ele não só adivinhava a pessoa que ia ganhar a eleição, como também votava nela. Além disso, se mudasse de ideia, ela não ia se manter no poder; o que se comprovou quando saiu nas passeatas de cara pintada em apoio ao impeachment.

Depois de acertar algumas eleições municipais, em 94, ficou bastante tempo na corda bamba, mas, no fim das contas, disse que ia de FHC:

-O Lula vai ter seu momento, mas não é agora.

Bisou FHC em 98, mas, em 2002, não teve dúvida. Contra o Serra, era Lula desde criancinha, mesmo sem nunca ter sido.

-Acho que já tá na hora do operariado entrar no poder.

Não era um especialista em política, nem um partidário. Mudava de voto sem uma razão clara; se arrependia, como todo ser humano; e tinha momentos em que preferia não se manifestar:

-Dessa vez era melhor ninguém ganhar mesmo.

Mas, mesmo sem declarar voto, todo mundo achava que a pessoa em quem ele depositasse sua confiança, e seu voto seria eleita.

Quando a polarização apertou pós 2015, ele se afastou total de política. Mas, como cabos eleitorais em campanha de boca de urna, os parentes o puxavam de um lado e do outro querendo suas previsões e seu voto. Convidavam ele para jantares, viagens, passeios, sempre com outros pretextos, mas no meio dessas oportunidades sempre queriam saber:

-Então, Gui, em quem você vai votar desta vez?

Ele aceitava os convites, mas se limitava a dar suas opiniões, em geral negativas, sobre todos os candidatos e dizer:

-Desta vez tá difícil. Ainda estou analisando.

Os últimos anos foram particularmente difíceis para a família Campos Pinto. A vó Mercedes parou de falar com a tia Heloise; e o Ruizinho deu um piti depois da eleição pra prefeito de 2020 e se indispôs com todo mundo. Mas se havia uma pessoa que ainda tinha trânsito livre em todos os núcleos familiares, não importando suas afiliações políticas, era o primo Gui.

Nesta eleição, os ânimos estão mais acirrados do que nunca. Até os parentes de outras cidades querem saber em quem ele votaria se morasse lá. Mas, sem muita explicação, o primo Gui se refugiou em Paquetá e não atende ninguém a não ser em caso de vida ou morte, bolão de megasena da virada, ou festa com boca livre.

Semana passada fui visitá-lo e, como não sou da família, tomei a liberdade de perguntar, não em quem ele ia votar, mas por que ele tinha se isolado. Ele me respondeu:

-Cansei disso tudo, amigo. Dá muito trabalho manter o controle da política brasileira.

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