Ficção

O bom e o útil

Quando Carlão chegou na capela onde estavam velando meu pai, todo mundo veio me perguntar:

-Você chamou ele?!
-Não, eu não, claro que não. Vai ver só se eu ia chamar o Carlão. Eu? Não.

E, não; antes que alguém duvide, não, eu não chamei ele.

Apesar de ser o mais inconveniente e mal educado dos meus amigos, ele, sabe-se lá por que, desenvolveu algum tipo de amizade com o meu pai. Talvez fossem os maus modos, talvez fossem as observações despudoradas, talvez fossem as piadas sem graça das quais até ele mesmo tinha vergonha de rir; seja o que for que tenha motivado essa amizade, ele não era só amigo meu, ele também era, ou, pelo menos, se tornou amigo do meu pai.

-Alguém contou pra ele- eu me defendi.- Só pode. Alguém ligado ao meu pai deve ter contado pra ele. Só pode. Só pode.

Só podia.

Assim que chegou, depois de me cumprimentar, me suspendendo pela cintura e dando um sonoro tapa na minha bunda, ele fez a ronda da capela, batendo nas costas de todo mundo, e falando alto sobre comportamentos nada apreciáveis do meu pai. Ao fim de cada história impublicável, ele afirmava:

-Ela era um safado dos diabos, mas tinha um coração de santo. Sacou? Um santo dos diabos, né?

E desatava a rir.

Mesmo sem ninguém pedir, ou querer, ele se postou na porta da capela e fez as vezes de anfitrião, me apontando pra todo mundo que chegava:

-Não esquece de falar com o filho, né? Eles estavam meio separados nos últimos tempos, mas filho é filho, né?

E as pessoas vinham me abraçar e dar seus pêsames.

A hora do sepultamento foi chegando e, sabe-se lá como, ele começou a distribuir umas cervejas fingindo estar fazendo segredo:

-Olha, só, se não fosse o nosso amigo um beberrão contumaz, eu nem teria trazido essas brejas pra homenageá-lo. Toma uma, vai! Você não vai fazer essa desfeita pra ele, né?

Intimidadas as pessoas começaram a beber e, talvez influenciadas pelas tentativas frustradas do Carlão de puxar um coro de “Ele foi um bom companheiro”, a falar alto.

Quando o pároco chegou para conduzir a oração final, o povo já estava em festa. Quando perguntaram se alguém queria falar algumas palavras, óbvio, Carlão aceitou o convite e botou todo mundo pra cantar juntos “Jesus Cristo” do Roberto Carlos que ele jurou ser a música preferida do meu pai. Não, não era. Ou talvez fosse. Pelo jeito o Carlão conhecia meu pai melhor que eu.

Na saída, depois de tudo terminado, Carlão me abraçou, me deu um beijo na bochecha e me disse:

-Fica tranquilo. Você foi um bom filho. Apesar de tudo, você foi um bom filho.

Hoje, em que se completam 20 anos da morte do meu pai e, também, da última vez em que eu vi o Carlão, ainda me pergunto se essa participação dele no velório foi boa ou não; e, cá entre nós, ainda não sei o que responder. A única coisa que eu sei é que essa participação foi providencial e, melhor, foi útil. Sim, foi útil, foi muito útil.

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