Ficção

Diz a Harmonia

Se alguém lhes perguntar do que mais sentem falta no seu relacionamento, elas dirão: a animosidade. Podem ficar sem as memórias dos momentos felizes, das escapadas românticas, ou das juras de amor; mas nunca deixariam de lado as lembranças cruéis das brigas, das rusgas, e, principalmente, dos ressentimentos.

Não que se odiassem, muito pelo contrário, mas tinham um extremo prazer em exercitar o que os que tribunais usualmente chamam de diferenças irreconciliáveis. Óbvio, discordavam no básico: política, religião, e futebol; mas realmente se sobressaíam nas discordâncias sobre o trivial, por exemplo: indicações ao Oscar, melhores sanduíches de Copacabana, e as piores cores do Arco Íris. E isso faziam com maestria.

Sem aviso ou preparação, brotava uma provocação aparentemente não intencional, e, pimba!, as farpas tomavam proporções gigantescas, os exércitos se arregimentavam, e o conflito podia ir de minutos a semanas, sem exata previsão de um fim. Apesar da aparente eternidade da briga, sempre havia alguém, eventualmente, a abocanhar a vitória.

A merecedora esse troféu também ganhava o direito à insuperável excitação de ter razão, e isso, vocês sabem a que levava. Uma sorria maliciosa, a outra menosprezava ter perdido  a discussão, o sangue quente se tornava tépido, e em breves elas fariam, não as pazes, mas dariam início às doces e desafiadoras preliminares de uma briga vindoura.

Assim viviam. Em harmônica desarmonia.

Um dia, os que acompanhavam sua relação se cansaram- afinal, as brigas que construíam e suportavam o relacionamento também tinham consequências para terceiros- e as forçaram a fazer terapia de casal. A princípio tiveram muita resistência, mas foram se abrindo e descobrindo as razões de assim serem, e de assim sentirem prazer. E, assim, enquanto se desvendavam, se desapaixonaram. Simplesmente assim.

Sem brigas, nem excitações, se separaram, pois, racionalmente sabiam, isso era o melhor. Para todas e todos. Hoje, separadas, sentem saudades acridoces dos tempos ruins que na verdade eram bons. Sentem terem perdido algo essencial, mas tem vergonha consciente de terem desejado com tanto ardor algo tão ruim. Hoje, separadas, aproveitam, com as papilas do amor embotadas, a desarmônica harmonia que a razão lhes legou.

Assim vivem, mas não gostam. Afinal, o que de bom lhes diz a harmonia?

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