Ficção

Demarcação

Quando, por conta de reveses da vida, perdeu (quase) tudo, ainda lhe sobrou espaço. E algum tempo. O tempo planejava usar para aumentar o espaço que tinha disponível e, assim, esperava, o espaço lhe conferiria mais tempo.

Resolveu começar por uma das duas mesas de ferro que o botequim colocava na calçada. Como tinha tempo, por menor que fosse, se esforçava para chegar quando o botequim estivesse abrindo, para poder clamar a mesa para si, sem disputa.

Para cada mesa havia duas cadeiras, mas ele só tinha uma bunda, o que tornava a cadeira extra da sua mesa um risco de ver seu espaço, se não tomado, compartilhado. Por isso, toda vez que alguém se aproximava, ele prontamente convidava a pessoa para sentar. Podia não parecer nada, mas esse gesto tornava a mesa sua, e ele, um anfitrião.

Com o tempo que tinha, as pessoas começaram a aceitar o seu convite e a ouvir suas histórias, dispondo para ele dos seus próprios tempos. Esse contato com as pessoas fez com o que seu tempo gerasse juros e dividendos. Quanto mais pessoas aceitavam o convite para se sentar em sua mesa e falar com ele, mais tempo ele tinha. Em breve a quantidade de pessoas aumentou, o que demandou o uso da segunda mesa, e ele passou a dominar todo o espaço do lado de fora do botequim. Para tomar o botequim inteiro foi um pulo. Um belo dia, ele ouviu alguém falar algo que comprovou que o terreno tinha se tornado seu:

-Vamos lá no bar do Fulano.

O Fulano era ele, e o bar, enfim, era seu.

Em pouco tempo, ele, que tinha (quase) nada, tinha um bar, o tempo das pessoas e, dentro em pouco, também conseguiu tomar posse da praça próxima ao bar. As pessoas, sem esforço ou direcionamento, passaram a nomear os elementos dos arredores com o seu nome- o barbeiro do Fulano, a banca do Fulano, a farmácia do Fulano- e, em breve, tudo que a sua (curta) vista alcançava, se tornou seu. Ao contrário de Alexandre, o Grande, ele não chorou; pelo contrário, ele riu, riu, riu, de se fartar. E sua risada atraiu mais pessoas que dispuseram mais de seus tempos consolidando, assim, ainda mais o seu espaço.

Porém o tempo se deprecia muito mais rápido que o espaço, e o seu, um dia, como acontecerá com o de todos, acabou. Informalmente botaram o seu nome na praça e, algumas décadas depois, um vereador, que um dia foi um menino, que jogava bola na praça e para quem ele pagava uma coca depois das peladas, colocou seu nome oficialmente no espaço, agora, devidamente, demarcado. Outros poderiam cravar bandeiras pelo solo, mas no mundo das ideias aquele espaço seria eternamente seu. A que coisa melhor ele poderia ter dedicado o seu tempo do que ao seu espaço?

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