O final de fevereiro de 2025 está sendo trabalhoso para os leitores de e-books. Todos já sabíamos que, ao pagar por livros digitais na Amazon, não nos tornamos proprietários das obras que “compramos”. Em letras miúdas, nos longos contratos de licença de usuário, está lá claramente dito que o livro, ou o conteúdo Kindle, é licenciado e não vendido. Nós é que não queremos ver.
“Todo Conteúdo Kindle é apenas licenciado pelo Provedor de Conteúdo, não sendo vendido por este.”
Porém o aviso de que a partir do dia 26 de fevereiro de 2025 não teremos a possibilidade de baixar o conteúdo e conseguir acessá-lo em outras plataformas que não as licenciadas pela Amazon gerou pânico entre os leitores, quer dizer, usuários. Será que agora entraremos verdadeiramente numa época de acesso ao livro, quer dizer, ao conteúdo como um serviço? Isso gerará a perda de acesso a obras pelas quais pagamos e temos tanto apreço? Ou, pior, para os paranoicos, como eu, isso significa que as plataformas poderão alterar as obras e, perdoem-me a teoria da conspiração, reescrever a história? Sim, sim, e, infelizmente, sim.
Mas isso não é novidade. Em 2009, Animal Farm e, máximo da ironia, 1984, o livro que fala de um mundo distópico onde a história é reescrita e apagada, foram retirados da plataforma por questões de copyright, e os leitores, perdão, usuários, perderam acesso às obras que compraram. Ou seja, o risco de fazerem o que seus contratos explicitam, sempre esteve lá, mas escolhemos ignorá-lo. Só que agora que a salvaguarda de manter os arquivos em outros repositórios não existirá mais, fica cada vez mais difícil negar a realidade de que o e-book não é como o livro físico em mais sentidos do que gostaríamos de acreditar.
Isso nos faz perceber como as discussões sobre o que é o e-book e se ele vai substituir ou não o livro ainda são rasas. Com menos de 30 anos de um mercado realmente ativo de e-books, precisamos entender que ainda estamos testando e definindo o que o e-book é ou vai ser. Por enquanto, é inevitável que todas as possibilidades que o e-book carrega, técnica e comercialmente, conflitem com a nossa referência de 500 anos: o livro físico produzido de forma industrial. Por uma questão de pura analogia e familiaridade, ainda achamos que o e-book, como o livro físico, é um bem que nos pertence e que não pode ser alterado após a sua compra, mas, todo dia, algo novo surge e nos mostra que o e-book não é igual, nem diferente do livro, muito pelo contrário. Enfim, como tudo na vida, como sempre, essa questão ainda é incerta e impermanente.
Talvez o propósito do e-book, a sua cultura de uso, e o relacionamento dos leitores, desculpem, usuários com ele seja, se não completamente, muito diferente da que temos com o livro físico. Isso implica, inclusive, na criação de fluxos de produção e distribuição que, talvez, precisem estar cada vez mais desvinculados das do livro de onde ele se originou. Às vezes, precisamos aceitar, a fruta cai longe da árvore de onde ela veio.
Então, nesse dia 26 podemos lamentar o nosso azar de termos menos acesso à leitura do que fingimos possuir, justamente pois evitamos ler os acordos que mostram que não somos leitores, mas, sim, usuários, ou comemorar que o e-book está encontrando cada vez mais a sua identidade, mesmo que ela não nos agrade ou seja difícil de aceitar. O que não quer dizer que não passarei os próximos dias, em completo estado de negação, baixando os mais de 3 mil livros que, contrariando acordos e contratos, eu acho que tenho o direito de possuir.

Fazer o quê? Sou, ou pelo menos me considero, um leitor, e não um usuário.