Ele tinha aquela mania chata de fazer aspas com a mão. Pra piorar ele ainda dizia: “Abre aspas”. O problema é que muita vezes ele esquecia de dizer o “fecha aspas” e tínhamos a impressão que tudo o que ele falava era uma longa ironia. Exemplo: “Vocês sabem como o governo é (sinal de aspas), abre aspas, humanitário. Com certeza, bla, bla, bla, etc e tal”.
Aquilo me deixava nervoso. Eu nunca sabia o que ele queria dizer. A quantidade de aspas abertas e não fechadas tornava seus discursos impenetráveis e suas opiniões ambíguas. Ele era a favor ou contra o governo? Amava ou odiava o trabalho? Traía ou era fiel à sua mulher? Era um amigo verdadeiro ou, abre aspas, um mui amigo, fecha aspas?
Não tinha como saber. Eu até perguntava às pessoas, mas elas não tinham esse mesmo tipo de incômodo. Pra elas não existia dúvidas sobre as suas opiniões. Porém, quando eu pedia que me explicassem o que ele queria dizer, elas desconversavam. Elas não ficavam incomodadas porque não ouviam, porque não, abre aspas, davam um pelota, fecha aspas.
Era cruel. Toda vez que eu o via chegando ou tinha um compromisso marcado que o envolvesse, ficava ansioso. Ele começava a falar, e muito, como sempre, e eu ficava contando quantos minutos, ou, melhor, segundos demoraria pra ele dizer “abre aspas”.
Um dia algo aconteceu e ele não falou o “abre aspas”. Eu esperei, mas não saiu. Até fiz algumas perguntas pra ver se o forçava a usar de uma citação ou um eufemismo, mas ele resistiu bravamente. Nada de abre aspas, nem de fecha aspas.
Pensei em confrontá-lo mas não era isso o que eu queria? Que nunca mais dissesse “abre aspas”? Ou será que eu queria ouví-lo dizer “fecha aspas”? Eu não sabia mais, estava, como diziam, abre aspas, bolado, fecha aspas.
Antes que eu pudesse chegar a uma conclusão do que fazer fiquei sabendo que ele, abre aspas, abotoou o paletó, fecha aspas.
Fomos no enterro, e todos lembraram, com saudades, da sua mania e seu vício de linguagem. Enquanto ele jazia deitado no salão funerário, a gente abria e fechava aspas sem pudor. O abuso era tanto que a energia acumulada das figuras de linguagem quase o trouxe de volta à vida.
Mas não trouxe e eu fiquei com uma sensação estranha, como se fosse, abre aspas, culpado de algo. De não ter sido amigo dele por conta dessa fixação em dar closura aos seus comentários e, ao invés de curtir a sua presença, ficasse testando a sua capacidade argumentativa e a sua intenção de dizer “fecha aspas”.
Mas como dizia Nelson Ned: “Tudo passará”, e nunca mais me senti, abre aspas, culpado, fecha aspas. Afinal, além da carne e dos ossos, tudo o que somos pros outros é linguagem; um bando de palavras no ar e na memória. Um apanhado de aforismos e anedotas. Fala e texto. E nada mais.
Então, não deveríamos tratar essa, abre aspas, realidade, fecha aspas, com mais carinho? Não sei, não sei. Ou como ele diria: não, abre aspas, sei.
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“Fecha aspas”.