Estranho que hoje, exatamente hoje, ou melhor, ontem, exatamente ontem, tenha morrido Ravi Shankar. Rolou uma sincronicidade séria. Ontem mesmo, enquanto eu assistia ao show de Edson Cordeiro e Toninho Horta interpretando as canções de Herivelto Martins, eu só conseguia lembrar dele. Quer dizer, dele e do meu amigo Pedro Bittencourt. Quem é Pedro Bittencourt?
Pedro Bittencourt é um grande saxofonista que estudou comigo no primeiro e segundo grau. O cara é tão aplicado que desde dos 10 anos já estudava sax. É óbvio que a nossa turma de moleques não perdoava essa dedicação e esse virou o mote para o seus apelidos. Todos ruins, diga-se de passagem. O menos pior, vejam só, era sexofonista. Pfiu.
A gente cresceu, o Pedro continuou dedicado ao instrumento e, acredito, no primeiro ano de faculdade, ele nos convidou para uma audição que faria no Parque Lage. Coisa chique. Desconstrução de Bach ou algo similar. Do alto da nossa ignorância musical fomos dar apoio ao amigo. Ele entrou em silêncio e começou a tocar algo que nunca tínhamos ouvido na vida. Nem o gênero musical da peça conseguíamos decifrar. Aturdidos, uma das nossas maiores preocupações era: e aí? Vamos aplaudir?
Esperamos ansiosamente, compasso a compasso, por aquele momento mágico onde haveria uma pausa e poderíamos mostrar nosso apreço por algo que não compreendíamos direito. Depois de vários alarmes falsos, onde nossas mãos quase batendo eram interrompidas por apartes frenéticos ou agudos surpreendentes, finalmente o momento chegou. Silêncio. Contamos até três. Um. Era esse o momento? Dois. Será que vai acontecer algo? TRÊS. É agora! Todo o grupo, nós e os demais convidados ao evento, irrompeu aliviado em palmas. Alguns, mais afoitos, inclusive se levantaram e soltaram discretos U-HUs!
Pedro não agradeceu. Lenta e inabalavelmente foi até o microfone para nos dar uma lição que guardo até hoje:
– Pessoal, acho que vocês não entenderam bem. Nessa desconstrução, estou tocando algumas obras de Bach ao contrário. Por isso, compreendo que estejam confusos sobre quando aplaudir. Mas, por favor, não batam palmas nos momentos errados ou vão estragar a apreciação. Pra facilitar, quando for a hora de bater palmas, eu aviso. Que tal? Em todo caso, agradeço o apoio.
Ele voltou a tocar sem mais alarde. De quando em quando, como combinado, nos avisava que era hora de aplaudir e, assim, nós o fazíamos. Simples e prático.
Lembrei dessa história, pois, ontem, quase não consegui assistir ao show por conta das compulsivas palmas do público. No show do Paulinho Horta, era só o tom da música baixar, o baterista dar uma mudada no ritmo, que o público aplaudia. Mas não era um aplauso simples, assim, comedido. Era coisa séria, com gritos de “Gênio”, “Lindo”, e, inclusive, um “Ô, trêm bão, sô” num dos momentos de delírio da platéia.
Quando o Edson Cordeiro entrou, o lance desceu a ladeira. A Diva estimulou o público e em alguns momentos chegou a interromper o show para papear a distância com as velhinhas que gritavam: “Volta pro Brasil, Mestre!”.
Já devem ter percebido que não sou um grande fã de palmas. Não credito isso a um trauma causado pela apresentação do Pedro. Sempre fui assim. Aliás, nunca entendi pra que servem as palmas. São um agradecimento ao artista? Um incentivo? Um sinal de que estamos vivos? Tenho que definir antecipadamente o que merece ou não o aplauso em pé? Enfim, o aplauso é compulsório? Não tenho a menor idéia, mas sei que fico extremamente encabulado quando chega a “hora”. O caso é tão sério que faço o máximo para escapar até de um simples “parabéns pra você”. Por isso me atenho a palmas controladas ao fim dos espetáculos e só no caso de realmente ter gostado do que vi. Acho mais seguro, sincero e respeitoso.
Por outro lado, tenho notado que, com o passar dos anos, a humanidade caminhou na direção inversa: está aplaudindo cada vez mais e nos piores momentos. Nos teatros, durante monólogos; nos shows, durante solos; e até durante a exibição de filmes nos cinemas onde os responsáveis pelas obras não podem ouvir. Esse excesso de bateção de palmas equivocada só me leva a pensar que seu único propósito é atender ao público. Dane-se o artista. O público quer dizer que gosta disso, daquilo; que entende o que artista quer dizer ou simplesmente bradar aos quatro ventos: “Ei, estou aqui!”. Resumindo, na minha opinião, não deve ter ato mais egoísta que a palma fora de hora. Coisa comum hoje em dia. Assim como diversos outros egoísmos.
E o que diabos isso tem a ver com Ravi Shankar? Palmas fora de hora me lembram desse momento vivido por ele no concerto para Bangladesh.
If you appreciate the tuning so much, I hope you will enjoy the playing more – Ravi Shankar
Num mundo onde o povo aplaude até afinação de instrumento, não era hora de ficarmos na nossa e tentarmos ouvir melhor uns aos outros? Acho que apreciaríamos muito mais o que vida tenta nos mostrar.
Ah, e sem palmas. Por favor.