Quando eu estagiei, umas duas vezes por ano, levavam o grupo de estagiários para apoiar processos seletivos no interior do estado. Era divertido. Colocavam o grupo de 20 jovens num ônibus em direção a uma cidade qualquer e a gente passava uma semana aplicando testes psicológicos de dia e curtindo de noite. Curtindo mesmo.
Era inevitável. Como você ia manter tanta energia libidinal dentro de um hotel sem acontecer uma besteira? Melhor colocar a garotada na rua.
Depois da noitada, chegávamos ao hotel na madruga e, depois de umas 3 horas de sono, era preciso estar em pé pra tomar banho, se vestir, tomar café e encarar os candidatos. Em geral eram umas seis cabeças em cada quarto. Enquanto um tomava banho, o restante esperava assistindo TV.
Eram os anos 90 e, como a maioria dos hoteis não tinha TV a cabo, éramos obrigado a assistir ao Telecurso Segundo Grau ou a uns desenhos animados que usavam como encaixe entre a sessão Coruja e os jornais locais. Uma vez, ponho a culpa no cansaço ou no pouco sono, dei uma surtada.
Estava passando aquele desenho antigo da Arca do Zé Colmeia. Lembram dele? A premissa era banal: uma pá de personagens da Hanna Barbera viajava numa Arca voadora e tinha que lidar com vilões brutalmente óbvios como o Sheik do Egoísmo, o Senhor Fumaça e a Iara Faz Sujeira. A gangue do Zé Colmeia era envolvida pelos vilões em algo negativo, relativo ao que estava explícito no seu nome, e, depois de brigarem entre si, faziam as pazes para se livrar do malfeitor. Nesse dia o episódio foi com o Senhor Trapaça.
Não sei por que, mas aquilo começou a me irritar. Cada personagem que era envolvido e se dava mal em uma de suas trapaças ia me deixando mais nervoso. Eu comentava o absurdo da situação com os meus sonados colegas de quarto mas eles nem pareciam se importar. A sua indiferença com o que ocorria com a gangue do Zé Colmeia acabou catalisando a minha reação. Totalmente exaltado, perdi o controle e gritei pra TV:
– O nome dele é Senhor Trapaça! TRA-PA-ÇA. O que acham que vai acontecer? Ele vai trapacear vocês! Vai trapacear vocês, seus animais idiotas!
Ontem o Bolsonaro apareceu dizendo que estava com CoVid. Discussão de se desejar a sua morte ou não à parte, eu, confesso, no primeiro momento, acreditei. Umas 6 horas depois, a trapaça se concretiza: ele aparece tomando algo que diz ser cloroquina e vende seus benefícios para o tratamento da CoVid como num infomercial do João Kleber. Eu devia estar preparado, mas infelizmente falhei e me deixei enganhar pelo Senhor Trapaça. Pelo jeito sou tão ingênuo quanto os amigos do Zé Colmeia.