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Dança da chuva

Pediu uma água no balcão da boate e foi recebida com incredulidade:

-Água?
-É, água.
-De que tipo?
-Normal.
-Do filtro ou mineral?
-Se tiver do filtro… é de graça, né?
-É, mas não tem.
-Então, por que ofereceu?
-Sei lá, não estou acostumada a servir água.

Pegou a garrafa da mão relutante da bartender e se encaminhou para a pista. No caminho, foi parada algumas vezes:

-Água?!
-É.
-Tá tudo bem?
-Tá, por que não estaria?
-Não sei, não estou acostumada a te ver bebendo… água.

Tentou dançar, mas, entre uma música ou outra, sempre tinha alguém pra se surpreender:

-Água?
-Porquê? Algum problema?
-Não, não. Deixa quieto, não está mais aqui quem falou.

O ápice foi quando a história da água chegou ao DJ que, num misto de zoeira e indignação, não se furtou a dedicar a ela um remix tribal house de Água Mineral da Timbalada, emendando na versão do Biquini Cavadão pra Chove Chuva do Benjor.

Sob os risos de toda a boate, ela, de saco e bexiga cheias, saiu puta da boate em direção à sua casa. No trajeto, como não podia deixar de ser, choveu, e ela, louca pra mijar, dando mais um motivo a quem a criticava, aproveitou pra se aliviar vestida, no meio da rua.

Quem disse que havia um limite pro quanto alguém pode ficar molhada? Quem disse que a dança da chuva não funcionava?

“Chove chuva, chove sem parar…”

Boca de Urna

O Brasil pode ter mais de 150 milhões de eleitores, mas para a família Campos Pinto quem decide as eleições mesmo é o primo Gui. Desde a primeira eleição pra presidente pós ditadura, quando a família se digladiava entre o plantel de candidatos afoitos pra ser o primeiro presidente eleito de forma direta depois de décadas, ele, do alto dos seus 16 anos, desvirginou seu título e acertou na mosca quem ia ser eleito:

-Sei não, mas esse janotinha do caçador de marajás é bem capaz de levar esse lance. Vou cravar logo nele.

Se votou ou não votou, ninguém sabe, mas a mística foi criada. Ele não só adivinhava a pessoa que ia ganhar a eleição, como também votava nela. Além disso, se mudasse de ideia, ela não ia se manter no poder; o que se comprovou quando saiu nas passeatas de cara pintada em apoio ao impeachment.

Depois de acertar algumas eleições municipais, em 94, ficou bastante tempo na corda bamba, mas, no fim das contas, disse que ia de FHC:

-O Lula vai ter seu momento, mas não é agora.

Bisou FHC em 98, mas, em 2002, não teve dúvida. Contra o Serra, era Lula desde criancinha, mesmo sem nunca ter sido.

-Acho que já tá na hora do operariado entrar no poder.

Não era um especialista em política, nem um partidário. Mudava de voto sem uma razão clara; se arrependia, como todo ser humano; e tinha momentos em que preferia não se manifestar:

-Dessa vez era melhor ninguém ganhar mesmo.

Mas, mesmo sem declarar voto, todo mundo achava que a pessoa em quem ele depositasse sua confiança, e seu voto seria eleita.

Quando a polarização apertou pós 2015, ele se afastou total de política. Mas, como cabos eleitorais em campanha de boca de urna, os parentes o puxavam de um lado e do outro querendo suas previsões e seu voto. Convidavam ele para jantares, viagens, passeios, sempre com outros pretextos, mas no meio dessas oportunidades sempre queriam saber:

-Então, Gui, em quem você vai votar desta vez?

Ele aceitava os convites, mas se limitava a dar suas opiniões, em geral negativas, sobre todos os candidatos e dizer:

-Desta vez tá difícil. Ainda estou analisando.

Os últimos anos foram particularmente difíceis para a família Campos Pinto. A vó Mercedes parou de falar com a tia Heloise; e o Ruizinho deu um piti depois da eleição pra prefeito de 2020 e se indispôs com todo mundo. Mas se havia uma pessoa que ainda tinha trânsito livre em todos os núcleos familiares, não importando suas afiliações políticas, era o primo Gui.

Nesta eleição, os ânimos estão mais acirrados do que nunca. Até os parentes de outras cidades querem saber em quem ele votaria se morasse lá. Mas, sem muita explicação, o primo Gui se refugiou em Paquetá e não atende ninguém a não ser em caso de vida ou morte, bolão de megasena da virada, ou festa com boca livre.

Semana passada fui visitá-lo e, como não sou da família, tomei a liberdade de perguntar, não em quem ele ia votar, mas por que ele tinha se isolado. Ele me respondeu:

-Cansei disso tudo, amigo. Dá muito trabalho manter o controle da política brasileira.

Medalha de ouro

Depois de três dias firmes na promessa de não fumar, recaiu. Ou quase.

Acordou agitado, no meio da noite, com a garganta coçando e a língua dormente por um cigarro; de um sonho sobre um bar de jazz com buffet de café da manhã em que todos ainda podiam fumar em espaços públicos e fechados. Bons tempos, bons tempos.

Foi nos esconderijos tradicionais, onde guardava maços para descumprir suas próprias resoluções de não mais fumar, mas não encontrou nem uma guimba de Medalha de Ouro, seu mata rato preferido. Da janela, procurou as luzes dos botequins debaixo do seu prédio, mas parecia que todos estavam fechados. Só lhe restava, de esperança, a banca 24 horas da esquina da Barão do Flamengo. Se ela não tivesse cigarros, ou, por um milagre infernal, estivesse fechada, teria que ir até ao posto da Ruy Barbosa ou da Farani. Ato que envolvia, na sua opinião, maiores riscos para a sua saúde do que um possível câncer de pulmão.

Colocou um short, chinelos, uma camiseta rasgada, que o confundisse com a população de rua local, e, no bolso, levou apenas o dinheiro contado pra dois maços. Celular, documentos, carteira, por precaução, ficariam em casa.

Passou pela portaria discretamente para não acordar o porteiro nem passar vergonha de sair vestido de cosplay de mendigo. Atravessou a praça do Largo do Machado quase marchando, num misto de bravura e medo que, esperava, fosse protege-lo de possíveis assaltantes. Acelerou o passo na rua do Catete e já da entrada, fechada, do metrô, conseguiu ver a luz branca da banca. Havia uma esperança, havia uma esperança.

Atravessou o sinal aberto entre as poucas motos de entregadores de aplicativo que cortavam o asfalto, jogando gás carbônico na atmosfera, e levavam as últimas refeições  cheias de ingredientes ultra processados aos insones, e em dois pulos estava no seu destino.

Atravessou a pequena multidão de boêmios que fumavam seus últimos cigarros e tomavam a saideira na banca depois que os bares do Flamengo já tinham fechado, e, de dedo em riste, revelou seu desejo ao mundo:

-Tem Medalha de Ouro maço?

-Tem. Branco ou Vermelho?

-Vermelho!

O jornaleiro trouxe o maço de Medalha de Ouro vermelho, e, desconfiado do cliente maltrapilho, o segurou à distância até ver o dinheiro. Ele entendeu o recado e buscou a grana no bolso. Não encontrou. No seu lugar havia apenas um furo. Assim como a camisa, seu short também estava rasgado.

Nem se dignou a explicar nada. Abaixou a cabeça e, entre os boêmios, que bebiam e fumavam, se deixou caminhar para casa, olhando para o chão, na esperança de encontrar o dinheiro perdido. Não encontrou.

Chegou na portaria do prédio e lembrou que esqueceu de trazer a chave. Bateu no portão e nas grades de ferro, mas o porteiro nem se abalou. Que remédio? Teria que esperar ele acordar naturalmente ou algum morador sair pra trabalhar na madrugada. Se não tivesse perdido o dinheiro, não saía da sua cabeça, pelo menos poderia esperar fumando, como naquele velho tango: “Fumar es un placer/ Genial, sensual/ Fumando espero”…

Sentou-se na escadaria do edifício e tudo o que podia sentir era ódio. Ódio de si, por fazer tanto esforço pra se matar; ódio da raça humana, por fazer tanto esforço pra se matar entre si. A extinção, pensou, devia ser um esporte olímpico, com categorias tanto coletivas, como individuais. Todas as nações, e todos os seres humanos empatariam em primeiro lugar. Medalha de Ouro para todos nós.

Livre. Nunca. Mais.

Acordou resoluto. Já não tinha mais nada a perder. Faria o que lhe desse na telha. Consequências, boas ou ruins, nada significavam ; não eram ganhos, nem perdas; eram apenas experiências.

Mal levantou da calçada, foi interpelado por um policial. Não lhe deixou terminar a sua cantilena agressiva. Não tinha culpa, nem medo para lhe orientar as ações, então lhe deu um beijo no rosto e um abraço fraterno.

Deixou o policial boquiaberto, para embarcar num ônibus que chegava no ponto. Entrou pela porta da frente e pediu carona ao motorista. Recebeu de volta uma risada e um chute na barriga que o jogou de volta à rua. O motorista, ainda rindo, arrancou o ônibus, e saiu atirando impropérios.

Não se deixou abater, e caminhou, mesmo sem saber pra onde ir. Na quarta esquina resolveu parar. Ir ou não ir significavam a mesma coisa. Então, para que andar? Sentou embaixo de uma marquise, fechou os olhos e, mesmo não estando cansado, dormiu.

Os sonhos lhe escaparam enquanto as pessoas desviavam dele na rua. Não era um objeto, nem um agente; estava se tornando apenas um elemento do ambiente.

Quando acordou, já era noite. Na rua vazia, um grupo de jovens, ao mesmo tempo ameaçadores e frágeis, se aproximou dele com pedaços de pau e garrafas. Sem dizer uma palavra, começaram a espancá-lo.

Ele não reagiu. Viver ou morrer nada significavam. Tudo era o mesmo. Tudo era diferente. Estava, enfim, imune às expectativas das consequências. Da vida? Talvez.

Sua visão foi se tornando cada vez mais vermelha e turva. Sentiu o ar lhe abandonar pela última vez, e sorriu um sorriso sem dentes. Finalmente estava livre, como tudo o que nada quer.

Feliz, triste; não fazia mais diferença. Não fazia. Mais. Nunca fez. Nunca fará. Nunca. Mais.

Livre.

Prima Opinio

Desde que as opiniões de pessoas vivas foram tornadas ilegais, não houve expectativa maior pela morte de um potencial pensador do que a de Gaius Marcus. Seus admiradores, num paradoxal misto de eros e tanatos, adoravam sua companhia silenciosa e calorosa, ao mesmo tempo em que ansiavam pelo momento em que ele morreria num acidente- as mortes naturais não eram mais naturais-, ou por vontade própria, e poderiam ouvir o que ele extraiu da experiência da vida.

Décadas se passaram e o seu silêncio sincero e sábio só exacerbava essa antecipação. Mesmo sabendo dos riscos de os vivos proferirem suas ideias em voz alta, correndo o risco de se tornarem párias em vida, ou de promoverem uma polarização indesejada na frágil coletividade humana, alguns, secretamente, óbvio, se perguntavam se não já estávamos maduros o suficiente para falar o que pensamos, e ouvir os pensamentos que os outros tinham a compartilhar. Movidos pelo medo de repetir o nosso triste passado de conflitos e violência sem sentido, esses poucos afoitos controlaram suas ansiedades, não se manifestaram, e esperaram pacientemente pelo dia em que, após o cessar de suas funções vitais, as ideias de Gaius Marcus seriam divulgadas.

Demorou alguns séculos, mas esse dia chegou. Sem aviso, Gaius Marcus se dirigiu às plêiades obtuárias, e deixou sua forma física se dissolver para retornar ao caldo primordial da criação. Excitados, seus seguidores rumaram com pressa às planícies ecoantes onde, das trombetas neurais, seus pensamentos, agora póstumos, e, portanto, legais, seriam espalhados aos 7 ventos cósmicos. Depois de um aparentemente eterno momento de espera, sua voz clara e segura, depois de um breve pigarro, resumiu toda a sua reflexão sobre a existência em uma só frase:

-Eu não sei. E você?

Sonhos Kafknianos

Você acorda de sonhos intranquilos e se põe a trabalhar. Escreve o sonho literalmente. Literalmente, como lhe ensinaram na escola onírica. Depois de lê-lo em voz alta, se pergunta se há algum sentido naquilo. Ou, melhor, se pergunta se alguém vai entender o sentido que esperava que ele tivesse, o sonho. Afinal, o sonho, já dizia Freud, como outras manifestações psicopatológicas da vida cotidiana, dá sentido a várias neuroses do indivíduo. Mas a pergunta é: será que essa manifestação neurótica vai ressoar, será que os outros irão se identificar com o sonho que só você sonhou?

Você tenta revisar o sonho, torná-lo mais atraente, trazer elementos de outros sonhos que estão fazendo sucesso por aí. E se não fosse você o sonhador, mas outra pessoa? Outra pessoa mais parecida com o leitor do sonho? Outra pessoa mais parecida com os desprovidos ou deficientes de orinicidade? Será que assim o sonho não faria mais sentido (para os outros, que não sonham) ou, quem sabe, teria maior aceitação?

Você desiste de mudar o sonho. Que valor teria um sonho que os outros queiram sonhar mas que não tenha partido de você? O que outros vão sonhar a seu respeito se souberem que você está fingindo o que sonhou? Será que, um dia, sonharão sonhar com o que você sonha?

Você desiste de editar seu sonho, apaga tudo o que escreveu, e tenta se entregar às sensações que o sonho lhe proporcionou, ir ao seu âmago, usar as imagens oníricas apenas como uma plataforma para alcançar o sentido que só você poderia de fato apreender ou criar. Mas é inútil.

Você, mais uma vez, lê o sonho em voz alta e, mesmo você, não consegue entender ou criar um vínculo com ele. Qual é o propósito de um sonho que só você pode sonhar e não consegue mobilizar ninguém? Ou, pior, qual é o valor de um sonho que mobiliza a todos, mas não é verdadeiramente seu?

O cansaço toma seu corpo e sua mente e, mesmo tendo levantado da cama há pouco tempo, você se deita em busca de descanso e acolhimento. O sono vem. Derrotado, como um eterno menino problemático e tímido da república tcheca, você se entrega. E sonha.

Você acorda, mais uma vez, de mais sonhos intranquilos (existem outros?), e se põe, mais uma vez, a trabalhar, sonhando que dessa vez você tenha sonhado o sonho com o qual sempre sonhou sonhar. Não será esse um sonho impossível? Não seria mais fácil acordar? Não, melhor sonhar. Melhor sonhar.

Esse texto foi escrito respondendo ao desafio da Newsletter Toranja. Faça você também esse desafio!