Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#08] A viralidade gráfica dos livros e sentimentos reproduzíveis

Dezembro de 1990.

Surge, no dia da entrega das provas finais do curso de inglês, a assustadora e sedutora possibilidade de compartilhar com o alvo de meu afeto as odes de amor que lhe dediquei. Mas como fazer isso? Como compartilhar as páginas soltas e caóticas de prosa poética, que, movido pela paixão, escrevi sobre ela?

Sim, esse era o problema: eu escrevi sobre ela e não para ela. Nunca me passou pela cabeça que seria necessário publicar, tornar público, esse meu sentimento, mesmo que o público fosse de uma pessoa só. Seria preciso pensar, planejar e produzir algo especial, algo que completasse o seu destino, algo que eu quase poderia chamar de, por que não?, um livro. Enfim, eu precisava tornar o texto algo reproduzível para que ele fosse, finalmente, além do seu autor.

Usar Xerox não seria uma boa opção. Além do custo, proibitivo para um aluno do segundo grau do século XX, a página fotocopiada tornaria os meus sentimentos repetidos e banais. Era preciso mostrar a dor, o esforço, o artesanato que simbolizaria todo o meu amor. Comprei numa papelaria no Largo do Machado um caderno interessante, porém não muito chamativo, para mostrar a beleza das simples e surpreendentes coisas que ela representava para mim.

A edição, sola e remanescente, 34 anos depois

Reproduzi, como numa espécie de diário, todos os textos, dividindo-os em partes pelas datas de criação, exibindo a evolução da minha paixão.

Reescrevi a mão todos os textos e, como detalhe, incluí um cartão grampeado à segunda capa que serviria de introdução, indicando a ela, mas fingindo que isso servia a outros, como melhor ler e aproveitar os textos que criei.

Num prazo curto, consegui deixar tudo pronto e, no dia da entrega, do meu lançamento, rumei cheio de esperança para tornar público, mesmo que seu nome não estivesse explícito em nenhum lugar, o meu amor.

Ela não apareceu.

Novembro de 1991.

O que era paixão se tornou uma desilusão, mas eu continuei escrevendo. Em vez de doces odes de amor em prosa poética, poemas curtos ultrarromânticos se tornaram a minha forma de expressão. Como miséria adora companhia, resolvi juntar os melhores, ou, quem sabe, os piores, num fanzine. Produzi uma master em papel ofício, com as ilustrações recortadas de revistas, textos datilografados numa IBM esfera e títulos desenhados à mão. Para reproduzir, dessa vez usei sem pudor a fotocopiadora do trabalho do meu pai. Se, antes, meu sentimento era raro e nobre, agora ele era baixo e barato. Cada texto merece a forma de reprodutibilidade que melhor o representa.

Fiz poucas cópias e as distribuí entre minhas professoras e professores de português, alguns amigos, na banca do Osny na esquina da Rio Branco com a rua da Assembleia, e uma delas enviei para a revista Animal. Querendo tornar pública a minha tristeza, mas não a minha identidade, não fiz uma página de créditos e ainda fiz o favor de publicar sob pseudônimo. A revista Animal destacou o meu fanzine na sua página de publicações alternativas, mas fez questão de frisar que eu queria ser divulgado, mas não queria ser encontrado.

Não estavam errados.

Setembro de 2024.

Num sebo especializado no encalhe de editoras, contemplo o mar de esforço físico, de papel e tinta, voltado a transformar em realidade os textos que os autores um dia imaginaram escrever e hoje se tornaram livros, mas não encontraram leitores. Falharam? Falharam como eu?

Não, enquanto eu não busquei a reprodutibilidade nem o reconhecimento, esses livros, como vírus analógicos carregando ideias que querem ser reproduzidas em castelos de impressão e mentes impressionáveis, compostos de miolos em preto e branco envoltos em capas coloridas, simplesmente não acharam os organismos hospedeiros adequados nos quais poderiam se replicar.

É num momento como esse em que fica clara a distância entre os universos de escrever e publicar. Sim, eles são universos distantes, mas são também cheios de pontes e escolhas que irão dar materialidade, através de linguagem e suprimentos gráficos, às mudanças que queremos ver no mundo. Desde amores não correspondidos e depressões juvenis até revoluções políticas ou culinárias. Nenhuma delas seria, nem se tornará, possível sem o momento mágico em que as ideias deixam os manuscritos e viram matrizes reproduzíveis para a sua repetição. Querem viralizar? Então, sem pudor, exercitem seus pontos finais e liguem as rotativas. Há (mais) algo (novo?) que o mundo precisa ler e conhecer. Torço para que, dessa vez, vocês sejam ouvidos, lidos e correspondidos. Como eu não fui.

[oei#07] A revolução permanente de impermanência da leitura

É estranho como esquecemos o quão inatural é ler. Olhar para símbolos num papel, ou em qualquer outra superfície, entender que existem, entre eles, relações e ordem, e, daí, extrair deles um significado não é de maneira nenhuma algo natural. É algo ensinável, facilitado por características fisiológicas, mas não é inato. Mesmo assim, depois de aprendido, é algo que consideramos dado e sem questionamento.

O mesmo acontece com os receptáculos dessa escrita. Os livros são cheios de convenções e ordens que consideramos “naturais” mesmo que sejam apenas construções geradas por acordos antigos surgidos de conveniências tecnológicas, sociais ou mesmo de capacidades e incapacidades dos nossos aparatos de percepção e cognição. Assim, por séculos, perpetuamos esses hábitos e regras muitas vezes sem o menor questionamento ou mesmo lembrança da sua frágil perenidade.

Mas é aí, então, que algo acontece; uma nova tecnologia, linguagem, grupo social, ou manifestação cultural aparece e tudo muda. A escrita formada por alfabetos fonéticos passa (ou volta) a ser formada, também, por pictogramas; um grupo crescente de leitores se sente mais confortável em ler na vertical em vez de na horizontal; desenvolvemos técnicas para inserir vídeos e áudios dentro dos textos lhes conferindo múltiplas camadas e interpretações; enfim, ler é uma atividade em contínuo processo de transformação, e os livros, seus aparatos preferenciais(?), também mudam com a leitura.

 

Assim, com o passar das gerações, as convenções que tínhamos caem por terra, mas nunca pacificamente. Defensores da velha e da nova ordem se digladiam em nome da tradição, da novidade, ou do que é (mais) “natural” mesmo que nada seja, foi ou será.

Quem pode culpá-los? As revoluções estão aí para isso mesmo. E elas normalmente começam discretamente em pequenos grupos de experimentação. Alguém se liga que o que fazemos apesar de fazer sentido não tem sentido, e se questiona: Por que não? Por que não fazer de forma diferente?

Olha, quem diria que os minidiscs voltariam?

Aí nos batemos contra os costumes, desafiamos nossas biologias, e criamos novas formas de extrair magicamente significado do ar. Assim nasceram os sinais de pontuação, os parágrafos, os capítulos, as notas de rodapé, os hiperlinks, os audiolivros. A cada nova descoberta e invenção, (re)criamos não só a leitura mas outros grupos de leitores. Afinal, ler (mesmo que sejam imagens) é decifrar códigos secretos, e ser um leitor é, não se enganem, fazer de uma sociedade tão secreta quanto.

Então, companheiras e companheiros de conspiração, vamos exaltar o símbolo da nossa revolução permanente O LIVRO, seja ele pictográfico, em quadrinhos, em áudio, vídeo, ou pergaminhos! Mesmo sabendo que a sua leitura, e nós leitores nunca seremos os mesmos pois nós, os livros e a leitura continuamos em constante (r)evolução. Sim, esse é um livro que nunca pararemos nem terminaremos de escrever.

everyday WE write this book

[oei#06] Na casa de espelhos das capas distorcidas

Even the greatest stars
Discover themselves in the looking glass

Hall of Mirrors – Kraftwerk

Você vai à Livraria sem saber o que procura. Você vai à Livraria como quem precisa se encontrar.

Na vitrine, um funcionário, bem intencionado, mas esperto demais para o seu próprio bem, montou uma seleção de livros amarelos. Sim, apenas livros com capas amarelas, totalmente amarelas. Naquele deserto de nada, você tenta identificar quais são os títulos que queriam destacar, mas, frente à afrontosa monocromia, desiste. Talvez tenha mais sorte dentro da loja. Você entra.

Tudo ao mesmo tempo agora

A disposição do acervo, lamenta, não é das mais convidativas. Na entrada você tem 3 pares de mesas: uma para as novidades, outra para as promoções; uma para os Young Adults, outra para as biografias; enfim, uma para os religiosos; outra para os autoajuda. Do imediatismo às súplicas de salvação, passando pelo narcisismo, tudo parece a mesma coisa, tudo parece igual.

Nesse mar de informação que parece nada ter a dizer, você luta para se encontrar; você luta para encontrar o autor, ou a obra, que lhe represente, que se identifique com você. Como numa casa de espelhos, você procura nas distorções das capas, aquela que mais lembre a pessoa que você quer ser. Mais do que encontrar uma leitura, o que você realmente quer é se apaixonar.

Você quer, através da capa, a isca, a armadilha, que irá lhe atrair e lhe aprisionar, descobrir a pista que buscava sobre o texto que irá lhe transformar. Mas não parece fácil. Textos blocados sobre cores fortes parecem funcionar, mas quando todas as capas à sua volta usam a mesma estratégia, é difícil se destacar. Uma ilustração pesca a sua atenção para logo você vê-la repetida em outra obra com um tema totalmente diferente. O que, afinal de contas, elas querem lhe dizer sobre o que irá encontrar dentro do que as capas escondem?

No fundo da loja, boxes comemorativos se amontoam em segredo, e estantes atulham os títulos de menos destaque, mas não menos importantes, deixando apenas as finas silhuetas das lombadas para lhe seduzir. Pode parecer pouco, mas às vezes é suficiente. E, assim, numa resga de capa, você encontra a paixão de ocasião à qual irá se entregar.

Com o livro em mãos, você admira as cores fortes da capa, e a ilustração com pegada psicodélica. Enquanto decide se irá levá-lo ou não, lembra de já ter uma edição do mesmo livro mas com outro design. Um pocket book com uma imagem pouco atraente e cores confusas que pouco lhe atraía a leitura, a qual eventualmente abandonou, mais pelo difícil texto em português lusitano do que pela capa sem graça.

Só de segurar essa nova edição de um livro que já tem, você sabe que de que dessa vez a leitura será muito melhor. Afinal os livros não tem capa. As capas são uma parte do livro, assim como o texto e, mais do que simples atração de compra, elas também são um estímulo à leitura e ao diálogo com as ideias do autor.

Sim, não há mais dúvidas, esse é o livro que irá levar. A capa lhe convenceu.

Na fila do caixa, enquanto observa jovens carregando boxes de trilogias de capa dura com óbvias atrações pseudo góticas que nunca lerão, lembra que, apesar de poder ser discutido, sim, gosto é uma questão de geração, idade, época e formação. Então, tudo o que achou feio e desagradável, tanto nas capas como na disposição dos livros, para alguém, pode ter sido bom, ou, pelo menos, não tão ruim.

Compra feita, você encontra sua família na frente da livraria e, enquanto passam pela vitrine, você dá a sua opinião:

– Que vitrine horrível, não?

A sua família se surpreende e tem algo a dizer:

– Que Nada! Todo esse amarelo? Nós A-DO-RA-MOS…

Você respira fundo, lembra que gosto até se discute, mas tem coisas que não valem o mal estar que vão gerar. E, para exercitar mais uma vez o seu insuperável bom gosto, assim como todos consideram os seus, olha com carinho para a bela capa que na próxima semana irá lhe acompanhar.

Assim, você, já não tão jovem quanto antes, deixa a Casa de Espelhos para, em breve, retornar. É sempre um prazer se (re)apaixonar.

 

The young man stepped into the hall of mirrors
Where he discovered a reflection of himself (…)

Sometimes he saw his real face
And sometimes a stranger at his place (…)

He fell in love with the image of himself
And suddenly the picture was distorted (…)

He made up the person he wanted to be
And changed into a new personality

Even the greatest stars
Change themselves in the looking glass
Even the greatest stars
Change themselves in the looking glass

Hall of MirrorsKraftwerk

[oei#05] A efemeridade da perfeição do formato do(s) livro(s)

Dê um passo para trás. Vá à sua estante. Pegue um livro ao acaso. Abra as suas páginas. Leia uma, duas, em ordem. Leia uma outra, ao acaso. Folheie. Passe pelas páginas, apenas correndo seus olhos. Abstraia do conteúdo. Perceba apenas as posições: do texto, das notas, das margens, das imagens. Entenda que, mesmo que não haja harmonia, você consegue perceber na estrutura do livro uma expectativa, ou, para alguns, uma presunção, de perfeição. O livro, em sua estrutura, na sua sequência, no seu formato, mesmo que o seu conteúdo e sua organização não correspondam a esse destino, foi criado para ser a moldura perfeita para o nosso conhecimento. A pergunta é: o livro é perfeito pois atende à nossa cognição, ou é perfeito pois fomos ensinados a ver a perfeição nele?

Mesmo nos livros que consideramos perfeitos, dependendo da cultura de origem, dependendo dos leitores que visamos atingir, algumas estruturas básicas mudam. De um hemisfério para outro, uns leem da esquerda para a direita, outros, da direita pra esquerda. Para alguns públicos, o excesso de espaço negativo é um atrativo, para outros, um desperdício. As relações entre as cores, os tamanhos, as formas, a disposição das imagens e do texto, por mais que atendam a estruturas matemáticas e biológicas que governam a nossa percepção, geram maior sensação de sentido e harmonia para algumas gerações, para algumas culturas, para alguns tipos de leitores do que para outros. Enfim, lemos como lemos, pois assim é o natural, ou pois assim fomos ensinados?

Na busca pela perfeição, pela estrutura perfeita que irá nos possibilitar a imersão completa nesse mundo das ideias (ficcionais ou não), testamos novos grids que cheguem a essa utopia, ou olhamos para o passado, considerando já perfeito o que surgiu “naturalmente”, para dali extrair os cálculos que nos digam como os livros podem ser áureos, pelo menos no seu layout.

Porém, essa discussão é espúria. Buscar ou esmiuçar a perfeição são tarefas sísificas. Afinal, nossos textos e criações talvez se encaixem tão bem nessas estruturas pois elas, de alguma maneira, estruturam o formato do nosso pensamento e, por conseguinte, da concepção das nossas obras. Por isso, cada novo conteúdo tem a possibilidade de sugerir novos formatos e novos caminhos a seguir no Design Editorial.

O próprio livro, como o conhecemos, é coisa nova. Sua popularização não chega a 500 anos. Antes tivemos outros formatos para a entrega desses conteúdos. Partindo da voz, passando por tábuas, pergaminhos, e chegando hoje ao livro digital. Podemos dizer que algum desses formatos é mais perfeito que o outro? Ou acusar algum deles de ser imperfeito? Se todos podem ser perfeitos, por que não perduraram?

Agora, dê um passo para frente. Imagine um mundo, ou um universo, em que somos uma entre várias espécies, não só sencientes, mas que leem. Como serão livros criados para atender a uma cultura, não simplesmente global e humana, mas universal? Como será a perfeição numa outra época, para outras culturas, e para outras espécies que percebam a luz, o espaço, e o tempo de formas diferentes?

“Leve-me ao nosso livro”

É impossível buscar a perfeição no livro, pois a sua perfeição deriva justamente de ele ser efêmero e mutante. A maior perfeição do livro não está no que ele é, mas em todas as possibilidades que ele, enquanto conceito, encerra. Que venham suas novas versões.

[oei#04] A esquizofrenia narrativa das identidades editoriais

Mal cheguei na biblioteca, a primeira coisa que me disseram foi:

— RIP Companhia das Letras. Nunca mais compro nada dessa editora.

Como estou exercendo o salutar hábito de ler menos notícias, não sabia do que estavam falando. Me explicaram:

— O Delfim Netto morreu hoje e, além de anunciarem que vão publicar a biografia dele, ainda fizeram “homenagem”, lamentando a sua morte. Valha-me, Deus, gente! Nos dias de hoje, passar pano pra cupincha da ditadura é o fim da picada.

Óbvio que fui verificar.

De fato, isso tinha acontecido, mas me parece que, depois do backlash imediato, na postagem trocaram o “lamentamos” original por “nos solidarizamos com seus amigos e familiares” ou algo assim.

Entendo a raiva dos leitores, mas o que mais me pegou foi que essa reação quebra a fantasia que não é a editora que vende o livro, mas, sim , o autor.

A editora, mais do que uma prestação de serviço para a publicação de obras, carrega consigo uma identidade que é mais do que um simples posicionamento de mercado. Há uma expectativa de que os livros daquela editora tenham uma espécie de relação entre si que evidencie os posicionamentos políticos, filosóficos e estéticos dos que ali trabalham e dos que leem suas publicações. Se lemos livros de uma editora, de certa forma, comungamos com ideias similares e temos, por que não?, uma identificação também pessoal com aquela marca. Somos, enfim, uma comunidade.

Portanto, alterações em decisões e linhas editoriais, mais do que simplesmente influenciarem resultados financeiros, estarão mexendo em relacionamentos. Lembro de ter vivido uma sensação de traição similar a essa, que estão me relatando, com a L&PM.

Na segunda metade dos anos 1980, graças à sua coleção Alma Beat da L&PM, o Angry Young Man dentro de mim encontrou um escape estético para as suas frustrações. Kerouac, Corso, Ginsberg, Ferlinghetti, toda a trupe beat, onde ainda incluíram de convidado o Bukowski, apesar de editada em outros lugares, se encontrava ali em peso, unida e tratada com o merecido respeito, com a tradução, por exemplo, do hoje best seller, Eduardo Bueno. Somando isso às memórias que tinha dos livros de humor e peças de teatro de Woody Allen, Jô Soares, e Luís Fernando Veríssimo, lançados no início da década, a L&PM se tornou uma espécie de porto seguro pra mim.

Era um autor novo que me parecia interessante? Se saiu pela L&PM, vamos dar uma chance. Era um autor consagrado do qual tinha ranço? A L&PM publicou um livro dele, vamos dar uma segunda chance.

A editora, mais do que a responsável pela publicação, se tornou um selo de qualidade na curadoria e também um lar. Confesso que quando não encontrava as edições da L&PM, na época não tão fáceis de achar no Rio, me rendia à Brasiliense, ou até ao Círculo do Livro, mas sempre com um aperto no coração e com a esperança de que, em breve, encontraria a edição devida para a minha biblioteca.

Teve uma vez, por exemplo, em que estava voltando do colégio, num sábado de tarde, e esbarrei com o volume I do Crônicas de um Amor Louco, jogado numa lona de plástico que se fingia de banca de camelô. Só com o dinheiro da passagem, depois de ouvir do dublê de livreiro que o livro era raro- sim, era-, e que estava até barato- sim, estava-, implorei a ele para esperar que eu fosse correndo pra casa buscar o dinheiro para comprar o livro. Assim prometi, e assim fiz. Ponham na conta da minha adolescência, mas não sei se faria o mesmo pelo livro de outra editora. Apesar de toda a fidelidade, essa história de amor teve seu fim.

O objeto de desejo da minha adolescência

Em meados dos anos 1990, por conta de crises financeiras, a L&PM, como contam no seu próprio site,  criou a L&PM Pocket. Assim tudo o que era raro e exclusivo, na minha opinião, começou a se tornar de consumo de massa. Senti, sem a menor justíficativa, óbvio, que tinha sido traído e que a L&PM, de alguma maneira, tinha desrespeitado um acordo que me permitia ser um leitor dela, sem precisar compartilhar esse prazer com mais ninguém. Afinal, ela era minha, pois parte da minha história estava ligada à ela.

Isso gerou em mim o que eu costumo chamar de dissonância narrativa. É um fenômeno que ocorre quando recebemos sinais trocados de narrativa vindos do mesmo lugar. Antes eu me identificava como leitor da coleção Alma Beat, fazendo, na minha cabeça, parte de um grupo seleto, depois esses mesmos livros, que participaram da minha formação, já eram pensados e impressos como literatura corriqueira e popularizados ao seu limite.

Esse tipo de alteração na narrativa mexia não só na minha opinião sobre a L&PM, mas também na minha visão sobre a minha própria identidade enquanto leitor. Sob o risco de começar a me identificar com algo que gerava contradições, as minha opções seriam apenas ignorar o ocorrido, e me abraçar à instituição, quase como a um culto, ou rejeitar essa relação e lidar com esse corte na minha própria identidade. Escolhi a segunda opção, e, guardadas as devidas proporções, é o que eu sinto estar ocorrendo no caso da Companhia das Letras e o Delfim.

Primeiro, não me espanta a publicação das memórias do Delfim pela Companhia. Eles sempre, como apontaram em alguns comentários na própria postagem, tiveram um leque ideológico amplo em seu portfólio. Porém, isso sempre foi feito com o devido cuidado, respeitando o que a marca representava, e a orientação dos seus próprios fundadores e leitores.

Porém, não podemos esquecer, a Companhia não é mais uma editora independente. Além das diversas aquisições que fez no seu processo de crescimento, hoje, parte dela pertence um grande conglomerado internacional, a Penguin Random House. Nesses processos de expansão, é comum que as identidades se diluam e se tornem mais orientações de marca voltadas aos seus, sempre em crescimento, nichos de mercado. Isso faz com que o cuidado com os relacionamentos dos antigos apoiadores e clientes se torne ainda mais delicado e crítico. Ações que pisam fora da linha editorial, seja na escolha ou na divulgação de novos títulos, por mais que não tenham impacto na enorme massa que visam atender, podem gerar essa esquizofrenia narrativa que afastará aqueles que, anteriormente, depositavam parte de suas identidades na relação com a editora. E não custa muito: um simples “lamentamos” no lugar de um “nos solidarizamos com amigos e familiares” pode ser o início do fim de uma longa relação.

A morte do Delfim Neto de forma alguma matou junto com ele a Companhia das Letras, mas, com certeza, gerou um abalo significativo na ideia que ela representava para um grande grupo de leitores. Vamos ver como isso se desenrola mais para frente. Se minha história com a L&PM servir de referência, posso dizer que ainda tenho meus encontros ocasionais com ela, esporádicos, em leituras na praia, em aeroportos, ou em viagens, por pura conveniência; mas o amor, esse, na boa, acabou.

[oei#03] O caro trabalho emocional de editar

Sexta à noite, um amigo me manda uma mensagem: conseguiu 30 dias de Amazon Prime, e pede indicações de filmes para ver na plataforma. Vasculhando a minha lista no JustWatch, esbarro com Vire Cada Página: As Aventuras de Robert Caro e Robert Gottlieb, ao qual ainda não tinha assistido, mas, sem o menor temor, podia recomendar.

No sábado de manhã, seguindo minha própria indicação, quem assiste a ele sou eu. Enquanto acompanho, maravilhado e emocionado, o relato dos 50 anos de magnífico trabalho e, talvez não amizade, mas, respeito entre essas duas figuras lendárias, só martelava na minha cabeça que até então não tinha me caído a ficha do que era verdadeiramente uma relação entre autor e editor, mesmo tendo feito parte de uma. Explico.

No início de 2022, a partir do meu curso de Storytelling na Descomplica, a Dra. Andrea Boanova, uma fiscal de alimentos aposentada da vigilância sanitária e futura autora, entrou em contato comigo. Queria saber se eu poderia ajudá-la a escrever um livro de crônicas autobiográficas sobre a sua atividade profissional. Não sabia por que ela tinha me procurado, nem exatamente o que fazer, mas, sentindo uma espécie de chamado do dever, perguntei se ela já tinha algo escrito e pedi que me enviasse.

Li o material e senti que havia uma história ali, mas estava escondida num enorme fluxo de consciência típico do processo de relembrar. Peguei um dos textos, tentei dividir em todas as narrativas que o compunham, e retornei para ela com minhas observações e o pedido que as reescrevesse em crônicas separadas. Pouco tempo depois ela me enviou uma nova versão e outros detalhes e correções, antes ocultos pela falta de direcionamento inicial, começaram a surgir. Na minha cabeça, a minha atividade com ela era apenas educativa ou consultiva, mas, na verdade, mesmo que, na época, eu não tenha percebido, eu era seu editor.

Começamos a nos encontrar regularmente e virtualmente, em parte pela distância, ela estava em São Paulo e eu, no Rio, e muito por conta da pandemia, que ainda estava à nossa volta apesar da vacina. Nesses encontros discutíamos os textos já existentes; planejávamos quais seriam os próximos escritos; revisávamos e definíamos uma estrutura geral para cada história e para todo livro. Enquanto isso, íamos trocando pequenos pedaços de nossas vidas, e amadurecendo tanto o livro como a nós mesmos, como autora e editor.

Um dia o texto ficou pronto. Ou, pelo menos, decidimos que não valia mais continuar a burilar. Nesse ponto o livro começou a se materializar. Passamos a discutir as opções de publicação física e digital, e formas de divulgação; buscar indicações de ilustradores, e diagramadores; e, depois de 2 anos de trabalho em conjunto após aquele contato inicial, o livro nasceu.

Ontem, eu finalmente percebi o quanto foi, e é, mágica essa relação.

Mais do que um simples revisor ou “conselheiro” de negócios, indicando como melhor desenvolver o texto tanto estilisticamente como de forma a atingir o público alvo determinado, o editor é quase um psicanalista, buscando junto com a pessoa autora, nos sintomas que emergem de suas palavras, pela verdade que ela quer trazer à tona.

Quando o filme acabou com uma linda cena sem som em que Caro e Gottlieb se debruçavam sobre o texto inacabado do 5° volume da biografia de Lyndon Johnson, me lembrei como fiquei espantado pela vontade que a autora tinha que eu participasse do lançamento do seu livro.

Impossibilitado por questões de agenda, não pude ir à São Paulo, mas enviei um vídeo a congratulando pelo livro. Na semana anterior ao lançamento, participei de uma live onde, confesso, me senti bastante emocionado e orgulhoso  com o trabalho realizado.

Claro que o mérito era todo dela, mas eu ficava muito feliz de ter cumprido o meu papel no processo de materializar uma obra que da sua forma específica e bem particular tornou o mundo um lugar mais interessante.

Talvez, se tivesse, quando começamos a trabalhar, a noção do verdadeiro papel do editor, eu teria me envolvido ainda mais com o caro, tanto em esforço, como em carinho, trabalho emocional da edição. Afinal, tão ou mais importante que a capacidade de leitor especializado do editor, para avaliar texto, narrativa e público, é a sua crença e o investimento emocional que faz na obra. Como bem disse Gottlieb no filme, ele não lamenta os livros que “recusou” e se tornaram sucessos; se os tivesse aceito, sem acreditar neles, talvez não cumprissem o papel ao qual se destinavam. A fé e a fidelidade ao que acredita, ele me fez perceber, são duas das mais importantes qualidades que um editor pode ter.

Sábias Palavras

Caro e Gottlieb deixaram que claro que a relação entre o editor e o autor, mais que uma prestação de serviço, é uma parceria que permite à pessoa autora descobrir e acreditar na verdade que ela precisa trazer ao mundo. Obrigado doutora Boanova por ter confiado em mim para fazer parte da construção da sua obra e por ter me dado a chance de crer no seu livro e em você. O prazer e o ganho, tenha certeza, foram todos meus.