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Os fantasmas da sala

Entrei jovem
escondido
Minha mãe não podia nem sonhar que tinha ido lá
Fui recebido por uma senhora idosa
aparentemente mal intencionada
que me deu um
doce
e passou a
mão
na minha cabeça
disfarçando o ódio que tinha de
mim

Lá voltei
um jovem
adulto
Ia visitar meu pai
adoecido
após sua operação
A mesma senhora estava lá mas
não me recebia mais
com doces
nem
afagos na
cabeça
Melhor
Eu preferia a sinceridade

Na próxima vez que estive lá
precisei arrombar a porta
para poder
entrar
A senhora não estava mais

Nem meu
pai
Ambos mortos
Mas seus sinais
e seus fantasmas
estavam espalhados pela casa
na forma de
boletos
e dos livros que eu amava
e ela
odiava
pois a faziam
se lembrar de
mim

Hoje me sento nessa sala
e penso
em como esse lugar é meu
e não é
Minha filha cresce por essa sala e dou a ela
um destino melhor
do que a senhora dos doces
sequer poderia
imaginar

Sonho em sair dessa sala
da qual sou um prisioneiro
fantasma
desde a primeira vez que nela
entrei
Mas
SIM
consigo me ver velho
recebendo a minha filha
no mesmo lugar que meu pai me
recebia
Sem velhas doces
ou amarguras
Com a certeza que conquistei esse espaço
que sempre foi
meu

Como ser grande

Se vejo uma nuvem
devo voar
Se vejo uma tela
devo pintar
Se vejo uma história
devo contar
Se vejo um prato
devo provar
Se vejo um ouvido
devo cantar
Se vejo uma roda
devo dançar
Se vejo uma piscina
devo nadar
Se vejo uma vida
devo amar

Se novo
luto?
Se vejo
devo?
Se velho
cedo?
SIM
Mas não tão cedo

(Em)torce

As suas articulações são frouxas.
Por isso,
você enverga,
mas não se quebra.
Então, torce e
se entorse.
E como se en-
torse.

Dá pra melhorar?

Melhorar? Não muito.
Você pode:
perder peso,
parar de beber,
parar de fumar;
meditar,
fazer esporte,
muscula-
ção;
rezar pela paz mundi-
al,
ter fé no futuro,
e até alimentar
um otimismo
completamente ir-
real
na vida.

E aí? Não torce?

Torce, mas entorse menos.
A gente vive
melhor
e torce pra que não se en-
torse.

Então. só resta torcer
pra não torcer?

Só.
O melhor remédio é mesmo
torcer
pra você não
torcer.

Se é o que dá pra torcer…
fazer o quê?

Não torcer.

5:25

Entregue à insônia,
você tenta dormir
mais uma vez,
de vez.

Mal fecha os olhos,
na web radio,
começam a tocar
Fleetwood Mac,
Stevie Nicks,
38 degrees,
e tudo mais
feito pra te des
pertar.

Você de
siste e de
cide
dar mais uma chance
à madrugada.

Se está acordado,
algum motivo deve haver,
algum sen
tido
deve
haver.

Pelo menos até o sol nascer,
até o sol
nascer.

Qual será
a próxima música
a não nos deixar
dormir?

Acridoce

Esqueça o amargo
Relembre o doce sabor da
infância
que não sabemos se
existiu
ou se o inventamos para
tornar os dias
de hoje
menos intra-
gáveis

Esqueça o amargo
Sonhe
Mergulhe
Banhe-se
nas doces fantasias
de infâncias que
nossos terapeutas insistem em lembrar
o quão amargas fo-
ram

Esqueça o amargo
Ou
melhor,
finja que o amargo
é/foi
doce
e brinque de
dia-
betes
com suas próprias
me-
mórias

Esqueça o amargo
Como o ar
que res-
piramos
não precisamos lembrar
dele
Ele é tudo o que

Ele é tudo o que
somos

Doces
a-
margos

Amanhecer

Ontem, a gente via o nascer do sol do outro lado, do lado daqueles que ainda não tinham dormido. Voltando de boates e bares, encharcados de álcool e conversas essenciais, seguíamos de carona em carros de desconhecidos em direção a casas que não fossem as nossas. Abríamos janelas e geladeiras na busca vital por ar e pela última dose; ligávamos televisores e cd players como trilha sonora para nossas últimas investidas amorosas; nos esparramávamos em futons e camas estranhas dando boas-vindas ao sono do qual necessitávamos; fumávamos cigarros e começávamos conversas tentando nos manter acordados para sempre. Não sabíamos o que queríamos, não sabíamos de nada, e estava tudo bem. E estava tudo bem.

Hoje, a gente vê o nascer do sol pelo outro lado, do lado daqueles que acabaram de acordar. Despertando assustados de sonhos estranhos dos quais não conseguimos lembrar, encharcados de suor e solidão, vamos arrastando os pés doloridos até cozinhas silenciosas em busca da cura inexistente para a ressaca da vida. Abrimos janelas e geladeiras para contemplar nossos desejos e lembrar dos nossos erros; entramos na internet em celulares e computadores tentando buscar a impressão de um amor que um dia achamos já ter sentido; nos enrolamos em cobertores e abraçamos travesseiros, tremendo, tomados pelo medo de dormir, mas com o terror de acordar; sentimos vontade de fumar e lembramos que precisamos parar, com isso e com tudo mais que já nos fez felizes; começamos monólogos em redes sociais tentando capturar a atenção de alguma alma que possa salvar a nossa. Save Our Souls, SOS, escrevemos repetidamente sem resposta em muros digitais. Esquecemos, sim, o que é querer; e nem lembramos da última vez em que quisemos algo verdadeiramente, e isso é tudo que nos resta. Sim, é pouco, é ruim, mas é tudo o que sempre merecemos. O que sempre pedimos para acontecer.

Amanhã, como será o amanhecer? Amanhã, como será amanhecer?