Ficção

Medalha de ouro

Depois de três dias firmes na promessa de não fumar, recaiu. Ou quase.

Acordou agitado, no meio da noite, com a garganta coçando e a língua dormente por um cigarro; de um sonho sobre um bar de jazz com buffet de café da manhã em que todos ainda podiam fumar em espaços públicos e fechados. Bons tempos, bons tempos.

Foi nos esconderijos tradicionais, onde guardava maços para descumprir suas próprias resoluções de não mais fumar, mas não encontrou nem uma guimba de Medalha de Ouro, seu mata rato preferido. Da janela, procurou as luzes dos botequins debaixo do seu prédio, mas parecia que todos estavam fechados. Só lhe restava, de esperança, a banca 24 horas da esquina da Barão do Flamengo. Se ela não tivesse cigarros, ou, por um milagre infernal, estivesse fechada, teria que ir até ao posto da Ruy Barbosa ou da Farani. Ato que envolvia, na sua opinião, maiores riscos para a sua saúde do que um possível câncer de pulmão.

Colocou um short, chinelos, uma camiseta rasgada, que o confundisse com a população de rua local, e, no bolso, levou apenas o dinheiro contado pra dois maços. Celular, documentos, carteira, por precaução, ficariam em casa.

Passou pela portaria discretamente para não acordar o porteiro nem passar vergonha de sair vestido de cosplay de mendigo. Atravessou a praça do Largo do Machado quase marchando, num misto de bravura e medo que, esperava, fosse protege-lo de possíveis assaltantes. Acelerou o passo na rua do Catete e já da entrada, fechada, do metrô, conseguiu ver a luz branca da banca. Havia uma esperança, havia uma esperança.

Atravessou o sinal aberto entre as poucas motos de entregadores de aplicativo que cortavam o asfalto, jogando gás carbônico na atmosfera, e levavam as últimas refeições  cheias de ingredientes ultra processados aos insones, e em dois pulos estava no seu destino.

Atravessou a pequena multidão de boêmios que fumavam seus últimos cigarros e tomavam a saideira na banca depois que os bares do Flamengo já tinham fechado, e, de dedo em riste, revelou seu desejo ao mundo:

-Tem Medalha de Ouro maço?

-Tem. Branco ou Vermelho?

-Vermelho!

O jornaleiro trouxe o maço de Medalha de Ouro vermelho, e, desconfiado do cliente maltrapilho, o segurou à distância até ver o dinheiro. Ele entendeu o recado e buscou a grana no bolso. Não encontrou. No seu lugar havia apenas um furo. Assim como a camisa, seu short também estava rasgado.

Nem se dignou a explicar nada. Abaixou a cabeça e, entre os boêmios, que bebiam e fumavam, se deixou caminhar para casa, olhando para o chão, na esperança de encontrar o dinheiro perdido. Não encontrou.

Chegou na portaria do prédio e lembrou que esqueceu de trazer a chave. Bateu no portão e nas grades de ferro, mas o porteiro nem se abalou. Que remédio? Teria que esperar ele acordar naturalmente ou algum morador sair pra trabalhar na madrugada. Se não tivesse perdido o dinheiro, não saía da sua cabeça, pelo menos poderia esperar fumando, como naquele velho tango: “Fumar es un placer/ Genial, sensual/ Fumando espero”…

Sentou-se na escadaria do edifício e tudo o que podia sentir era ódio. Ódio de si, por fazer tanto esforço pra se matar; ódio da raça humana, por fazer tanto esforço pra se matar entre si. A extinção, pensou, devia ser um esporte olímpico, com categorias tanto coletivas, como individuais. Todas as nações, e todos os seres humanos empatariam em primeiro lugar. Medalha de Ouro para todos nós.

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