Como tudo que dá errado, ou certo, essa história também começou de forma inocente. Nas quintas, uns três caras da controladoria, no caminho pra tomar um chope no bar do Gaúcho depois do expediente, começaram a fazer uma fezinha da Megasena.
A princípio ninguém sabia o que estava rolando, ou, se sabia, preferia ignorar. Era aquele tipo de coisa que passava abaixo do radar da rádio corredor. O gerente deles, um estatístico frustrado, quando ficou sabendo, inclusive, quis dar lição de moral dizendo que loteria era imposto dos pobres e que a chance de ganhar era ridícula. Não deu outra. Logo após o pito do chefe, eles ganharam uma quadra.
Tá, o dinheiro foi pouco, mas deu pra um deles botar aparelho nos dentes e pra outro fazer um transplante capilar. A tentativa de embelezamento, mesmo mal-sucedida, chamou a atenção do resto da firma que começou a se interessar pela atividade pós expediente dos sortudos.
O primeiro que quis fazer parte do rateio foi o Zé Márcio, funcionário antigo e caprichoso que cuidava da Copa. Como quem não quer nada, ele começou a assuntar:
– Quadra, né?
– É.
– Legal. Foi jogo simples?
– Simples. 6 dezenas. Na bucha.
– Sorte, hein? Sabia que jogando mais dezenas tem mais chances?
– É?
– É. De quanto é a cota?
– Cota?
– É, quanto cada um coloca em cada aposta?
– Tem isso não. A gente aposta o que tiver de trocado.
– Pois devia ter. Se incomodam se eu organizar o Bolão?
– O Bolão?
– É. O Bolão. Deixa comigo. Eu mantenho vocês informados.
Sem ninguém para impedi-lo, Zé Márcio cumpriu sua promessa. Criou um grupo de whatsapp pros apostadores; escolheu a imagem de um trevo de quatro folhas em cima de uma pilha de dinheiro como avatar para dar sorte; estabeleceu um valor mínimo de cota, e um dia e horário pra encerrar os depósitos; compartilhou o seu pix para recolher as apostas; e decidiu, sozinho, que a partir de então apostariam nos dois sorteios semanais, tanto no de quarta quanto no de sábado.
Com essa “profissionalização”, o Zé Márcio acabou afastando os sortudos originais, que só queriam ter algo que os unisse pra conversar a respeito no chope de quinta, mas conseguiu até trazer mais alguns novos apostadores, na maioria os habitués da Copa que matavam as oito horas regulamentares de serviço se enchendo de café. Mesmo com o aumento de participantes, o bolo, ainda pequeno, não tinha virado o Bolão que ele esperava criar.
Tudo mudou com a entrada da Cláudia.
Cláudia era a nova coordenadora de comunicação digital. Nova de empresa e idade, costumava usar uns camisões xadrez compridos com umas bermudas cargo que lhe davam um ar ainda mais jovial. Além disso, adorava e sabia contar histórias. Quando ficou sabendo do Bolão já se adiantou pra apostar e, óbvio, tinha até um causo pra justificar a sua pressa.
– Cês lembram daquele restaurante onde todo mundo ganhou na Mega, menos um cara?
– Lembramos.
– Pois, é, esse cara foi ex-sogro da minha prima de consideração. Quando ele ficou sabendo que a galera tinha levado a bolada e ele não tinha sido incluído, até infartou.
– Sério? E morreu?
– Não, pior: melhorou e teve que voltar a trabalhar todo dia num lugar que o lembrava que ele podia nunca mais ter que trabalhar.
O povo chegou até a rebolar sentindo o frio percorrer as suas espinhas.
A história de terror de Cláudia pelo jeito deu resultado e logo o Bolão lotou. Era só a Mega acumular ou prometer um prêmio acima de 10 milhões que o povo todo corria pra participar. Ninguém queria ficar sozinho no trabalho enquanto o resto dos colegas estariam curtindo aposentadorias precoces na praia. Ninguém queria ter o funesto destino do ex-sogro da prima de Cláudia.
Na verdade, o que realmente motivava a maioria não era a vontade de ficar rica, mas o medo de ser abandonada eternamente num trabalho do qual precisavam, mas que preferiam não fazer. Essa sensação era tão explícita que no grupo do Whats a discussão pré sorteio não era sobre a compra de propriedades, carros ou viagens. Eles só conversavam sobre não ter que precisar ir pro serviço depois de ganharem a bolada.
Há um ano, não sei se vocês lembram, rolou aquela estiagem de prêmios da Mega quando ela ficou acumulando várias vezes até ao ponto de chegar no valor recorde do prêmio. Lembram? Pois, é. Nesse período, eles começaram apostando timidamente, porém, a cada novo sorteio sem ganhador, a excitação aumentava. Pra piorar, no terceiro ou quarto sorteio da série, eles levaram uma boa quadra que deu pra todo mundo recuperar o que já tinha apostado e ainda sobrou um troco pra custear novas apostas.
Quando chegou no décimo sorteio acumulado, o Zé Márcio sentindo que todos estavam começando a ficar nervosos demais convocou uma reunião para traçarem uma estratégia para escolher os jogos que com certeza seriam sorteados. O gerente da Controladoria achou uma besteira, mas, como parte do Bolão, acabou participando pra poder prestar a sua consultoria estatística.
No encontro que quase envolveu toda a empresa, discutiram se deviam repetir os números, excluir os últimos que já tinham saído, deixar eles serem escolhidos na surpresinha, ou pedir pra que os filhos dos funcionários marcassem os números pra dar mais sorte. Teve até um cara que ofereceu uma galinha do sítio da avó pra bicar uma tábua com os números da Mega e escolher pelo grupo. Quando questionado como isso iria ajudar, ele explicou:
– De todas as galinhas da minha avó, essa sempre escapou da panela. Sorte ela tem. Sorte ela tem.
A discussão não foi pra lugar nenhum e começou a gerar rusgas entre os funcionários que já estavam ansiosos esperando que os seus sonhos de nunca mais trabalhar se concretizassem logo. Quando o vozerio se tornou incompreensível e a confusão não conseguia mais ser desatada, Cláudia bateu na mesa e pediu a palavra:
– Aí, gente, e os sortudos originais? Eles estão apostando?
Zé Márcio foi até conferir a sua planilha, mas tinha certeza que não.
– O problema talvez esteja aí. Cadê a galera que começou o movimento? Tá faltando eles pra juntar as nossas sortes e fechar esse prêmio- Cláudia decretou.
Criaram um petit comitê pra convencer os sortudos originais a apostar com o restante da empresa. Dois não queriam alegando que o que importava era só o chope de quinta, e o terceiro, como tinha virado evangélico, não queria mais saber de bebida, nem de jogo. Apesar das negativas iniciais, Zé Márcio estava determinado e disse que não arredaria pé da controladoria até convencê-los a participar desse Bolão.
– Esse vai ser o último, eu prometo. Vamos ganhar dessa vez e nunca mais iremos precisar trabalhar ou apostar em loteria.
A verve, ou quem sabe, a aporrinhação funcionou e todos apostaram. Inclusive o convertido que pediu 10% do prêmio do Zé Márcio pra uma obra de caridade da qual ninguém tinha ouvido falar.
Bom, boletos finais gerados, apostas compartilhadas, a sorte estava lançada. Até os números da galinha entraram num dos cartões. Afinal, dessa vez valia tudo. Era vai ou racha. Ou eles venciam como grupo, ou morriam como empresa.
Deu o dia derradeiro e todos, de suas casas estavam acompanhando o sorteio, esperando que seus sonhos se tornassem realidade. Zé Márcio, Cláudia, os sortudos do chope, o sortudo convertido, e até o cara da galinha que, pra dar mais sorte, foi pro sítio da avó, assistir ao sorteio junto com a galinha. Todos vidrados na TV, acompanhando número a número a virada do destino.
O fim da história vocês lembram. Deu em todos os jornais. Não sei se foi sorte, ou se foi azar, ou, quem sabe, um misto dos dois. Mas, enfim, deu no que deu, e todos tiveram o que mereceram. Como normalmente acabam todas as histórias onde a gente confia na aleatoriedade do destino. E, cá entre nós, tem outra coisa na qual podemos confiar?