O Sebo como Esporte de Contato

Pra não se render totalmente às redes sociais e não tornar os espaços físicos simples locais de retirada de livros, as livrarias independentes têm oferecido uma agenda de eventos regulares para levar os clientes às suas lojas. A Berinjela promove mensalmente um sábado de descontos que gera filas no subsolo do Edifício Marquês de Herval; a Alento e a Janela apostam em clubes do livro, lançamentos, cursos, e leituras de obras pelas próprias autoras; e a Baratos continua agitando com seus shows e discotecagens. Já a Jacaré, com um espaço menor, apostou em sábados analógicos, em que as novas aquisições não são divulgadas nas redes sociais e precisam ser conferidas in loco.

Esse sábado, fui resolver uns lances pelo Largo do Machado e decidi dar uma passada lá. Cheguei na Galeria Hollywood Center uns 5 minutos antes da abertura e já tinha gente esperando. Um jovem casal hipster, que conversava relaxadamente, e uma senhora de calça animal print, casaco marrom vintage, e um cachecol exagerado pro quase frio que assola o Rio de Janeiro, agarrada na bolsa com tanta tensão que parecia querer mostrar ostensivamente que não tinha nada a ver com o casalzinho atrás dela na fila.

O livreiro surgiu de uma sala de dentro da loja e começou a acender as luzes do estabelecimento. A senhora, pra marcar território deu dois passos à frente. Quando ele virou a chave para abrir a porta, ela já fez menção de entrar, mas ele saiu e fechou a porta na cara dela para levar o cavalete de divulgação da loja pra frente da galeria. Ansiosa, ela quase se colou na porta de vidro, batendo o pé, contando os segundos que ele levaria para voltar. Nessa hora, um cara de camisa do Bangu, trazendo a tiracolo um menino de uns 8 anos, se juntou a nós.

O menino, sem perceber o que estava rolando, se colocou ao lado da porta pra entrar. O pai, já sentindo o cheiro de raiva que emanava da senhora de calça de leopardo, tentou tirar o menino de perto dela, mas foi lento demais. A coroa já deu uma bundada na criança pra mostrar de quem era o primeiro lugar na fila.

Logo o livreiro voltou e finalmente abriu a loja. A mulher avançou pro balcão central e começou a colocar livros e mais livros embaixo dos braços. Eram tantos livros que ela parecia um polvo tentando salvar incunábulos de um incêndio na Biblioteca Nacional. Eu e o restante do pessoal deixamos ela avançar sôfrega pelas pilhas tentando encontrar não só o que ela queria ler, mas, aparentemente, o que ela também não queria que lêssemos. Me coloquei em frente a uma das pilhas, que ela já tinha esquadrinhado, e fui curtindo os livros com calma, lendo quartas capas, orelhas e prefácios, para saber não só o quê, mas se realmente iria comprar alguma coisa. Óbvio que essa lentidão ia me causar problemas.

Depois de ter passado todas as pilhas em revista, ela resolveu verificá-las novamente só pra ter certeza de não ter deixado nada pra trás. Recomeçou sua jornada pela pilha ao meu lado e segundos depois queria avançar pra minha. Resolvi traçar ali o limite e não arredei pé.

Ela, ansiosa, nem pensou em me pular, com medo que eu levasse no seu lugar alguma preciosidade, e ficou de olhos arregalados batendo pé ao meu lado. Só de sacanagem, reduzi a minha velocidade. Cheguei ao ponto de voltar a alguns livros pelos quais já tinha passado só de birra.

Ela não aguentou de ansiedade e, quase metendo a cabeça embaixo do meu sovaco, começou a puxar livros pra colocar embaixo dos seus. Nessa hora, como um assassino pego em flagrante levantei as mãos e a deixei alimentar sua compulsão consumista pseudoliterária. Quando acabou com a minha pilha, continuou até terminar a sua segunda rodada.

Enfim, ofegante e com olhar triunfante, ela se encaminhou com suas compras pro balcão. Não resisti e fui lá ver que diabos valia tanto esforço, deselegância e violência. Me espantei: os livros mais recentes da Isabel Allende e da Giovanna Madalosso; Pobre Marinheiro do Sammy Harkham;  algo do Amos Oz; uns três ou quatro livros da Agatha Christie; e alguns pockets de romances metidos a espertinhos do início dos 2000, meio na linha de Melancia, Becky Bloom e Bridget Jones; nada que ela não pudesse encontrar com calma em qualquer livraria ou mesmo em outros sebos com preços até menores.

Depois de pagar, ela saiu esbarrando nos outros clientes, sem falar nada com ninguém, e sumiu de vista.

Quando saí da loja, fiquei pensando o que justificava esse tipo de comportamento? Provavelmente ela não vai ler esses livros, pelo menos não todos, nem todos por agora. Então pra que essa angústia? Aí me caiu a ficha: ela era só mais uma entusiasta do comércio enquanto esporte.

Sob a menor indicação de escassez, por mais artificial que ela possa ser, o senso de urgência se instaurou no âmago da sua alma e ela reagiu como se estivesse lutando pela sua sobrevivência. Exatamente como os atletas são movidos pela ilusão gerada pelas competições esportivas, seu único propósito era vencer, vencer e vencer.

Será que eu deveria ter lhe avisado que ninguém mais estava competindo nesse torneio que só rolava na cabeça dela? Por enquanto, melhor, não. Quando o sebo passar a distribuir luvas de boxes para os clientes, talvez seja mais seguro lhe dar esse toque.

 

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