Mal cheguei na biblioteca, a primeira coisa que me disseram foi:
— RIP Companhia das Letras. Nunca mais compro nada dessa editora.
Como estou exercendo o salutar hábito de ler menos notícias, não sabia do que estavam falando. Me explicaram:
— O Delfim Netto morreu hoje e, além de anunciarem que vão publicar a biografia dele, ainda fizeram “homenagem”, lamentando a sua morte. Valha-me, Deus, gente! Nos dias de hoje, passar pano pra cupincha da ditadura é o fim da picada.
Óbvio que fui verificar.
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De fato, isso tinha acontecido, mas me parece que, depois do backlash imediato, na postagem trocaram o “lamentamos” original por “nos solidarizamos com seus amigos e familiares” ou algo assim.
Entendo a raiva dos leitores, mas o que mais me pegou foi que essa reação quebra a fantasia que não é a editora que vende o livro, mas, sim , o autor.
A editora, mais do que uma prestação de serviço para a publicação de obras, carrega consigo uma identidade que é mais do que um simples posicionamento de mercado. Há uma expectativa de que os livros daquela editora tenham uma espécie de relação entre si que evidencie os posicionamentos políticos, filosóficos e estéticos dos que ali trabalham e dos que leem suas publicações. Se lemos livros de uma editora, de certa forma, comungamos com ideias similares e temos, por que não?, uma identificação também pessoal com aquela marca. Somos, enfim, uma comunidade.
Portanto, alterações em decisões e linhas editoriais, mais do que simplesmente influenciarem resultados financeiros, estarão mexendo em relacionamentos. Lembro de ter vivido uma sensação de traição similar a essa, que estão me relatando, com a L&PM.
Na segunda metade dos anos 1980, graças à sua coleção Alma Beat da L&PM, o Angry Young Man dentro de mim encontrou um escape estético para as suas frustrações. Kerouac, Corso, Ginsberg, Ferlinghetti, toda a trupe beat, onde ainda incluíram de convidado o Bukowski, apesar de editada em outros lugares, se encontrava ali em peso, unida e tratada com o merecido respeito, com a tradução, por exemplo, do hoje best seller, Eduardo Bueno. Somando isso às memórias que tinha dos livros de humor e peças de teatro de Woody Allen, Jô Soares, e Luís Fernando Veríssimo, lançados no início da década, a L&PM se tornou uma espécie de porto seguro pra mim.
Era um autor novo que me parecia interessante? Se saiu pela L&PM, vamos dar uma chance. Era um autor consagrado do qual tinha ranço? A L&PM publicou um livro dele, vamos dar uma segunda chance.
A editora, mais do que a responsável pela publicação, se tornou um selo de qualidade na curadoria e também um lar. Confesso que quando não encontrava as edições da L&PM, na época não tão fáceis de achar no Rio, me rendia à Brasiliense, ou até ao Círculo do Livro, mas sempre com um aperto no coração e com a esperança de que, em breve, encontraria a edição devida para a minha biblioteca.
Teve uma vez, por exemplo, em que estava voltando do colégio, num sábado de tarde, e esbarrei com o volume I do Crônicas de um Amor Louco, jogado numa lona de plástico que se fingia de banca de camelô. Só com o dinheiro da passagem, depois de ouvir do dublê de livreiro que o livro era raro- sim, era-, e que estava até barato- sim, estava-, implorei a ele para esperar que eu fosse correndo pra casa buscar o dinheiro para comprar o livro. Assim prometi, e assim fiz. Ponham na conta da minha adolescência, mas não sei se faria o mesmo pelo livro de outra editora. Apesar de toda a fidelidade, essa história de amor teve seu fim.
Em meados dos anos 1990, por conta de crises financeiras, a L&PM, como contam no seu próprio site, criou a L&PM Pocket. Assim tudo o que era raro e exclusivo, na minha opinião, começou a se tornar de consumo de massa. Senti, sem a menor justíficativa, óbvio, que tinha sido traído e que a L&PM, de alguma maneira, tinha desrespeitado um acordo que me permitia ser um leitor dela, sem precisar compartilhar esse prazer com mais ninguém. Afinal, ela era minha, pois parte da minha história estava ligada à ela.
Isso gerou em mim o que eu costumo chamar de dissonância narrativa. É um fenômeno que ocorre quando recebemos sinais trocados de narrativa vindos do mesmo lugar. Antes eu me identificava como leitor da coleção Alma Beat, fazendo, na minha cabeça, parte de um grupo seleto, depois esses mesmos livros, que participaram da minha formação, já eram pensados e impressos como literatura corriqueira e popularizados ao seu limite.
Esse tipo de alteração na narrativa mexia não só na minha opinião sobre a L&PM, mas também na minha visão sobre a minha própria identidade enquanto leitor. Sob o risco de começar a me identificar com algo que gerava contradições, as minha opções seriam apenas ignorar o ocorrido, e me abraçar à instituição, quase como a um culto, ou rejeitar essa relação e lidar com esse corte na minha própria identidade. Escolhi a segunda opção, e, guardadas as devidas proporções, é o que eu sinto estar ocorrendo no caso da Companhia das Letras e o Delfim.
Primeiro, não me espanta a publicação das memórias do Delfim pela Companhia. Eles sempre, como apontaram em alguns comentários na própria postagem, tiveram um leque ideológico amplo em seu portfólio. Porém, isso sempre foi feito com o devido cuidado, respeitando o que a marca representava, e a orientação dos seus próprios fundadores e leitores.
Porém, não podemos esquecer, a Companhia não é mais uma editora independente. Além das diversas aquisições que fez no seu processo de crescimento, hoje, parte dela pertence um grande conglomerado internacional, a Penguin Random House. Nesses processos de expansão, é comum que as identidades se diluam e se tornem mais orientações de marca voltadas aos seus, sempre em crescimento, nichos de mercado. Isso faz com que o cuidado com os relacionamentos dos antigos apoiadores e clientes se torne ainda mais delicado e crítico. Ações que pisam fora da linha editorial, seja na escolha ou na divulgação de novos títulos, por mais que não tenham impacto na enorme massa que visam atender, podem gerar essa esquizofrenia narrativa que afastará aqueles que, anteriormente, depositavam parte de suas identidades na relação com a editora. E não custa muito: um simples “lamentamos” no lugar de um “nos solidarizamos com amigos e familiares” pode ser o início do fim de uma longa relação.
A morte do Delfim Neto de forma alguma matou junto com ele a Companhia das Letras, mas, com certeza, gerou um abalo significativo na ideia que ela representava para um grande grupo de leitores. Vamos ver como isso se desenrola mais para frente. Se minha história com a L&PM servir de referência, posso dizer que ainda tenho meus encontros ocasionais com ela, esporádicos, em leituras na praia, em aeroportos, ou em viagens, por pura conveniência; mas o amor, esse, na boa, acabou.