O Editor Invisível

[oei#09] Os (des)enobrecimentos gráficos que tornam o livro (m)eu

Na minha infância, quando pintava uma grana extra em casa, comprávamos livros. Enciclopédias, coleções, livros grandes em capa dura com letras douradas e fitilhos. A coisa era tão séria que, mesmo não sendo religiosos, tínhamos uma enorme bíblia, de capa dura imitando couro, com douração trilateral, sobre um suporte de leitura no meio da sala. Minha mãe, ateia convicta, se explicava:

– É pelas ilustrações do Doré.

Não era exatamente essa, mas dá pra ter uma ideia de como era preciso concordar com ela.

E fazia suas críticas:

– Se bem que eu ficaria feliz em tirar aquela foto desse reaça do João Paulo II da introdução.

Vai entender…

Graças ao Círculo do Livro, e suas edições “especiais”, cresci acostumado com as ditas encadernações de luxo. Enquanto o povo era obrigado a viver com livros em brochura, de bolso, sem orelhas e colados, eu ganhava de aniversário coleções em capa dura, costuradas, e envernizadas de Monteiro Lobato e Sherlock Holmes.

O detalhe do Saci fazia toda a diferença, mas, confesso, a edição grampeada da Brasiliense fazia mais a minha cabeça

Eram bonitos de se ver, mas, confesso, muitas vezes abria mão de ler o Shakespeare na edição de obras completas em papel Bíblia que tínhamos em casa para enfiar no bolso de trás da calça, uma edição fininha, de capa vermelha, quase se desfazendo da Ediouro.

– É por comodidade- eu mentia.

Era por amor.

Quantas noites passamos sonhando juntos…

Aquela pequena edição de Sonhos de uma Noite de Verão me acompanhava nos pontos de ônibus, nas esperas nos Fast Foods, e era “vagabunda” o suficiente para ser anotada à exaustão. Como dizia o Stanislaw Ponte Preta, era “vaca, porém honesta”.

Cercado por edições raras e caras, sendo vigiado super egoicamente pelo Freud gravado em ouro e fogo na capa preta da sua coleção da Imago, eu construí, quase em segredo, uma coleção de pequenos livros, muitos de bolso, resgatados em sebos, feiras do livro, e saldos, que representava a minha forma de amar os livros: sem pompa, sem circunstância, mas com muito fervor.

Aqui estou, mais um dia, sob o olhar psicanalítico do vigia

Por isso, quando tocava a capa fosca e rugosa dos meus pockets de ficção científica da DelRey e cheirava seu miolo quase florestal, o texto adquiria um gosto diferente daquele que as edições sérias e sem vincos de manuseio da Hemus me proporcionava. O texto podia ser quase o mesmo, mas o livro e a experiência eram outras. Por consequência, eu também era diferente quando as lia.

Hoje, depois de muito penar pela fantasia das edições de luxo, eu sei, o livro nobre não é o que passou por acabamentos mais caros, mas o que foi cuidadosamente pensado para ser não mais meu, mas mais eu.

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