O Editor Invisível

[oei#10] Um elogio à rabugice dos livreiros ficcionais e reais

Não sei se é de propósito, mas, em todas as obras cujo cenário principal é uma livraria ou um comércio de produtos culturais, as protagonistas invariavelmente são pessoas intratáveis e “fracassadas”. Não estou exagerando. Desde os moderninhos de Alta Fidelidade e Black Books, passando pelos inofensivos livreiros de Notting Hill e Mensagem para você, até o soporífero A. J. Fikry do livro e do filme de mesmo nome, todos são pessoas com vidas interiores razoavelmente ricas e de grande erudição, mas que estão passando por processos complexos de falência econômica e psicológica, enquanto se exasperam com a população ignara e o estado atual da cultura. Olhando dessa maneira, parece até não haver histórias de sucesso envolvendo livrarias, seus funcionários, e proprietários.

Tá bom, até na vida real essas histórias são raras, mas não é um pouco cruel só guardar esse tipo de propaganda do sucesso para cadeias de fast food, corretoras de ações, e vendas por telemarketing? Parece até que o fracasso, com brio e ética- sim, eu percebi esse detalhe paternalista que eles utilizam- é o único destino reservado aos livreiros ficcionais.

Sim, o problema não é sermos nichados, os clientes é que são ruins

Como já fui, quer dizer, sou livreiro- afinal livreiro, como fumante, a gente nunca deixa de ser, só fica na reserva- eu me pergunto o quanto a representação dessa classe profissional é acurada, ou se essa é só uma maneira velada da mídia expressar um julgamento de valor sobre o mercado cultural de varejo, ou, quem sabe, talvez, os dois. Pensando bem, infelizmente vou ser obrigado a dar o braço a torcer, os autores não estão tão errados de nos retratar dessa maneira. Esse é um daqueles casos em que a ficção quase acerta na mosca.

Eu, e os muitos livreiros que conheci somos bem parecidos com isso o que a ficção mostra: um povo sem grana e, tá, um pouco pedante. Pra não ficar ruim pra gente, vamos reformular: pessoas que não se alinham com os critérios de sucesso da sociedade capitalista, e têm opiniões radicais sobre assuntos herméticos, embasadas em fontes inacessíveis à população em geral. Somos, em resumo, depressivos e irritadiços; o que, no início do século XX ,os tratados psiquiátricos chamavam de neurastênicos, ou que, no linguajar corrente, a gente poderia chamar de chatos.

Sim, somos esnobes

Mas, deixe-me fazer aqui uma defesa da nossa classe: como poderíamos ser diferentes?

Somos, em geral, gente cheia de conhecimentos pouco úteis para a vida comum, e que, por isso mesmo, entendemos a farsa que vivemos em sociedade. Por pura proteção, nos escondemos do mundo em templos devotados não ao comércio, mas, sim, à reflexão e ao pensamento. É nesses espaços seguros, como salas do tesouro, que esperamos aqueles que vivem na roda viva do mundo real para lhes iluminar um pouco com a nossa sabedoria não acadêmica e não convencional, ou, quando eles não tem senso estético ou inteligência, discretamente mostrar-lhes o caminho da rua.

Sim, temos opiniões sobre seus gostos

Assim, na ficção e no mundo real, nos cabe o papel de ser os guardiões rabugentos do paraíso que irão questionar seus gostos e expor suas ignorâncias. Dentro do campo editorial, os livreiros são, por assim dizer, os únicos dotados do poder e da maldição de só dizer a verdade.

Talvez, por isso, quando as mega stores começaram a dominar o espaço das livrarias, se fez a escolha de precarizar esse trabalho. Ao invés de termos gente inteligente para conversar sobre o que realmente você deveria estar lendo, decidiram colocar uma força de trabalho robotizada, focada apenas em identificar se e onde o livro se encontrava na loja, e, em caso contrário, fazer a sua encomenda. Agora que o comércio é basicamente eletrônico, o livreiro virou uma figura quase mitológica, extinta, substituída de forma acintosa por sites de recomendação e booktubers que fazem publi de qualquer coisa, sem ao menos saber os títulos das obras que representam.

Sim, a sorte é que somos pacíficos

Mas nem tudo está perdido, há uma resistência. Especialmente nos sebos, ainda encontramos livreiros de verdade por aí, emitindo suas opiniões, fazendo troça dos nossos gostos, e nos ensinando a sermos melhores leitores. Por isso, nós, os livreiros, reais ou ficcionais, atuantes ou da reserva, nos reservamos o direito de sermos chatos, detalhistas, arrogantes, e rabugentos. Fazemos isso não por nós, mas porque os leitores precisam. Fazemos isso para que vocês tenham ainda mais prazer e deslumbramento em ler.

Mesmo com todos os nossos conhecidos e famosos defeitos, só me resta desejar longa vida a nós, livreiros insuportáveis e a nossas livrarias maravilhosas. E se você não gostar da gente, sem stress; há muita gente online e offline pronta a lhe atender nesse mundo mercenário, insípido, e obtuso em que você decidiu morar.

Sim, um dia a Internet vai rejeitar você também

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