O Editor Invisível

[oei#15] A comoditização do livro feito para não ser lido e do consumidor não leitor


Chegou Novembro e com ele a sua infame e interminável Black Friday. Seduzidos pelas aparentemente vantajosas ofertas, os compradores de livro enchem as sacolas de livros (físicos e virtuais) que esperam (virtualmente) ter tempo (virtual?) de ler. Enquanto eu fazia o mesmo, me lembrei de uma série de LPs dos quais a gente costumava fazer troça quando adolescente: os LPs com músicas para ouvir.

O importante não é ouvir, mas pra quê ouvir a música

Na época, ignorando o que vinha escrito depois do “ouvir”, toda vez que esbarrávamos com algum desses, a galhofa era geral. Como bons adolescentes, sabedores dos segredos do universo, e críticos contumazes da sociedade construída pelos adultos, ríamos do pleonasmo sugerido pelo título pouco inspirado. Não cabia na nossa mente que houvesse um disco com músicas para fazer outra coisa que não serem ouvidas. Era como se houvesse todo um mercado de livros feitos para não serem lidos.

O tempo passou e, hoje, como um dos adultos que trabalha na construção de um mundo mais incompreensível e com cada vez menos sentido, a ideia do disco de músicas para ouvir, ou não, é tão tranquila pra mim como a ideia de um livro feito para ler ou para não ser lido. O que realmente importa, mercadologicamente, é justamente o propósito que vem tanto depois de ouvir, como depois de ler, ou de simplesmente de comprar, sem a obrigatoriedade de se ler ou se ouvir. Complicou? Deixa eu tentar me explicar.

Quando vamos a um sebo conseguimos ver com facilidade a multiplicação dos livros feitos para não serem lidos. Por exemplo, no fim do século XX, toda vez que um jornal criava uma coleção de clássicos, não dava seis meses para eles aparecerem em lotes nas nossas portas. As pessoas que compravam essas coleções, ou pelo menos seus primeiros volumes, buscavam atender a muitos objetivos que podiam passar bem longe de ler, tipo ter uma coleção, estimular outros a ler, ou mesmo só seguir uma onda.

Hoje, um fenômeno similar acontece com os livros dos clubes de assinatura. Adquiridos por impulso, para atender a vontade de ler, ou de parecer estar lendo, o tipo de livro que o clube oferece, eles muitas vezes acabam ainda embalados nas estantes das livrarias de usados. Inclusive, tem um sebo aqui perto de casa que recebe tantos desses livros que criou até uma prateleira separada para eles.

Não conta pra ninguém, mas é na Beta de Aquarius

Quando esse tipo de fato surge na minha frente é impossível não me perguntar como nos tornamos presas tão fáceis da comoditização do livro. A princípio, o livro não é, ou não poderia ser, uma commodity. Um livro é sempre diferente do outro, mas, apesar dos preços, o aumento da comodidade na sua aquisição baixou uma régua difícil de ignorar. Antes, para se comprar um livro, mais do que dinheiro e tempo para ir à uma livraria e encontrá-lo, o que nem sempre era fácil, era preciso querer lê-lo de verdade.

Hoje, no caso dos digitais, não é preciso nem espaço para armazená-lo e, quando os preços baixam, quase criminosamente, é difícil resistir a tentação. Mesmo que você saiba, mas finja que não, que nunca os lerá, o desejo de os ter supera a lógica. Afinal, quem disse que todos os livros foram feitos para ler? Muitas vezes o desejo de ler, de parecer ter lido, ou mesmo de proclamar publicamente que um dia pretende lê-lo, é suficiente para estimular a compra.

Por isso é importante fazer uma distinção: as editoras e livrarias atendem não só a leitores, mas principalmente aos compradores de livros, que, não raramente, não tem interesse ou intenção de ler. Os livros, como objetos, virtuais ou físicos, atendem a objetivos que vão muito além da leitura. Não é de espantar que nos vídeos de booktubers seja comum ver seus “influenciadores” tratando a audiência como colecionadores e não como leitores. Já que a atividade de ler não depende do livro, assim como o livro, enquanto produto, não depende da leitura para se justificar, fazer a defesa da leitura não é condição sine qua non para defender o mercado editorial.

Por isso, glamourizar o livro não é um caminho muito produtivo para estimular a leitura ou promover a cultura. O caminho passa pelo objeto, mas não termina nele. Enquanto continuarmos fazendo essa confusão cada vez mais trataremos aqueles que são ou poderiam se tornar leitores, apenas como consumidores de conteúdo ou produtos. Pelo jeito, não apenas os livros podem ser commodities, mas os seus consumidores, sejam eles leitores ou não, também podem ser tratados como produtos sem distinção a serem acumulados em volumes e nunca verdadeiramente apreciados.

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