O Editor Invisível

[oei#26] O falso conflito entre leitura e escuta nos inescapáveis livros de som

Leia essa frase: No Princípio era o texto.

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Quando vejo booktubers ou booktokers discutindo os méritos de considerar a audição de audiobooks como leitura por simples questões de contabilidade, sempre me pego lembrando: no princípio era o texto. Mas no princípio, esse texto, para o futuro leitor, e mesmo também para o autor que o concebeu era fala. Uma fala, muitas vezes, interna e íntima, mas uma fala.

E é essa fala que a escrita reproduz na história humana e na história pessoal de todos nós leitores. Não é à toa que o primeiro contato de todo o leitor, atual e futuro, com o texto é, ou foi, através da voz de outro. O texto então nos surge através da história contada pelos pais, pelas professoras, ou, hoje, pelas ferramentas online que distribuem vozes digitais, reais ou artificiais, transportando histórias dos mais distantes rincões do mundo até os computadores de mão que carregamos em nossos bolsos.

Essa fala, essa história, pode até ser contada na tradicional transmissão oral da cultura, mas quando ela é feita a partir do livro, é ali que o futuro leitor percebe que aquele objeto, físico ou digital, carrega, escondido nos sinais gráficos que representam palavras, um som. Um som estável e permanente, que se repete independendo de quem as lê. É nessa vocalização do texto que descobrimos a permanência da leitura.

Assim, após a aquisição da habilidade de decodificar as letras e as palavras, o leitor se torna, ele mesmo, o narrador do texto que se coloca à sua frente. Então a sua voz se sobrepõe à voz dos pais, dos professores, e dos mediadores de leitura. Ler, óbvio, é um dos primeiros sinais de independência do indivíduo, lhe permitindo ter discussões internas sobre as ideias dos outros, e lhe ensinando a processar a experiência alheia através da sua própria voz.

Por isso, a discussão sobre a validade do audiobook como leitura sempre me parece vã. O audiobook não é novo. Desde a possibilidade de registro sonoro, já esteve em todas as suas formas de reprodução, do vinil, passando pelo cassete e pelo CD, até o inescapável formato digital.

Mas tendemos a esquecer que o livro, que como uma forma de reprodução gráfica de massa também tem pouco tempo, foi concebido como uma forma de transmitir a voz de oradores, de poetas, de dramaturgos, de contadores de história. Enfim, o primeiro audiobook, o primeiro livro de som, foi o escrito.

Seja ele gráfico ou em áudio, o livro estará sempre cumprindo a sua missão de transmitir a fala do outro para as nossas mentes, da forma que for mais adequada ou conveniente às condições que tenhamos para participar dessa conversa, e de acordo com as nossas preferências de leitura ou audição. Pois o livro sempre será uma interface com a fala do outro com quem queremos nos relacionar. E a fala é a origem e o final de toda essa relação.

Leia essa frase: No Princípio era a fala.
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