Imagino que o patriotismo, como o apêndice, já pode ter tido uma função. Numa época mais primitiva, quando os recursos eram escassos, e as pessoas viviam com medo constante, prontas a matar seus vizinhos por qualquer coisa, o patriotismo devia funcionar como uma ferramenta de coesão grupal.
– Por que eu não posso matar o meu vizinho, mesmo?
– Ué, ele é seu compatriota. Vocês são da mesma pátria.
– Tá bom. E por que eu devo ajudar ele a construir aquele poço, mesmo?
– Pela mesma razão, pois isso vai engrandecer a nossa pátria.
– OK. Entendi. Mas o que é pátria, mesmo?
– Como assim? Você não sabe o que é pátria? Você não é um patriota?
– Sou, sim. Sou, sim. Desculpe perguntar.
Assim o patriotismo foi se enraizando na nossa cultura e, como toda fantasia fabricada, necessitava de ferramentas cognitivas para perpetuar a sua ilusão. Ele precisava de fronteiras artificiais para “impedir” o uso dos recursos naturais da pátria por “terceiros”; de um modelo de governança que dêsse vantagens aos “articuladores” do patriotismo; de uma moeda que só eles pudessem imprimir para controlar a circulação de valores; e de símbolos, como uma fantasia romântica de origem, uma bandeira pouca imaginativa, e uma marchinha megalômana e autoindulgente, para incutir uma sensação de orgulho artificial em pessoas que só compartilhavam o mesmo local de nascimento.
O tempo passou, o mundo mudou e o patriotismo, aos poucos, foi deixando de ser útil, como rodinhas de bicicleta, ou superstições alimentares. Ficamos mais inteligentes e empáticos, pelo menos parte de nós, e começamos a trocar o medo pelo amor como tônica das nossas relações. Para que, então, nos aferrar a algo que não existe se já temos maturidade suficiente para tomarmos decisões sozinhos?
Sem respeitar esse nosso amadurecimento, o patriotismo não foi embora, e, como um órgão vestigial, um apêndice, ele permaneceu na nossa cultura, sem servir para nada a não ser perpetuar os modos e meios de opressão criados em seu próprio nome. E, hoje, no Brasil de 2021, estamos sofrendo de patriotite.
Invadido por más intenções metidas a valorosas e enganos propositais, este apêndice está sendo usado para defender os meios de opressão de uma parte da população sobre a outra, e para perpetuar uma cultura escravocrata, misógina, preconceituosa e ao mesmo tempo suicida e assassina. Como numa doença auto-imune, a inflamação desse órgão, aparentemente sem propósito, criado para nos impedir de cair no barbarismo, está nos tornando cada vez mais primitivos, e atacando o corpo que deveria defender.
E, hoje, no 7 de setembro, mais uma data fantasiosa, inventada para promover o mito de grandeza de um “país” que há 200 anos passou de pai pra filho e continua funcionando aos trancos e barrancos, sofrendo sucessivos golpes de estado capitaneados por forças armadas ociosas e com fantasias de poder, os agentes patogênicos dessa patriotite vão sair às ruas de camisa do brasil, fazendo arminha com a mão, para apoiar um genocida que se autoproclama um Messias com o único propósito de se apropriar do erário nacional e favorecer sua família de incompetentes e seus amigos milicianos. O patriotismo no Brasil está prestes a supurar.
Mas há esperança. Em 2007, cientistas da Universidade Duke descobriram que o apêndice, o do nosso corpo, fabrica e serve como depósito de bactérias que auxiliam na digestão, além de produzir anticorpos que ajudam na defesa do organismo. Talvez o apêndice do patriotismo possa também ter um uso e nos defender da própria inflamação que ele sofre e provoca.
Convocar o próprio patriotismo contra a doença que se apossou dele mesmo talvez seja a nossa última saída.