Como era inevitável ser vigiada…
…na saída de casa, ficava no canto direito da parte de trás do elevador para ser refletida no espelho convexo de corpo inteiro.
… na ida e na volta do trabalho, esperava pelo metrô nos cantos das plataformas, onde tinha certeza que apareceria nas telas de vigilância.
…na hora do almoço, quando via uma matéria sendo gravada nas ruas, passava discreta e lentamente ao fundo para aumentar as chances de ser vista na televisão.
…nas postagens de celebridades lamentando a morte de outros famosos, fazia esforço para ser a primeira se compadecendo e desejando força a enlutados que não conhecia.
…nos eventos do trabalho, sempre se sentava nas primeiras cadeiras, dava declarações de apoio à empresa, e iniciava as palmas de pé para os gerentes.
…na pós graduação, era uma das poucas a manter a câmera aberta durante toda a aula e a parabenizar os professores pelo seu conhecimento.
Como todos nós, nos espelhos, câmeras, e telas, era presença constante e assídua. Porém, ao contrário de nós, o fazia ansiosa e deliberadamente.
Mas…
…quando fechava os olhos para dormir, e não conseguia ver nada, nem a si mesma, se perguntava como era possível que mesmo abrindo mão tão fervorosamente da privacidade que não tinha, ninguém a visse.
Talvez por isso…
…quando sonhava, sempre estava sozinha e sempre era invisível.
Talvez por isso…
…quando acordava, assim continuava por mais que clamasse por uma atenção que desejava merecer e nunca receberia.
Como todos nós, era apenas mais uma prisioneira ao mesmo tempo ostensivamente desprezada e vigiada.
Como todos nós, era apenas mais uma figurante num mundo com deficit de atenção.
Como todos nós, não era ninguém; como todos nós, não era nenhuma de nós.
Fim da Gravação.