Ficção

Smart City Gulliver

Ele gostava de se considerar um sujeito normal, e até seria, não fosse a sua altura. Quando chegava em qualquer ambiente, sempre tímido e discreto, imediatamente se destacava: era maior que os outros; muito maior que os outros. Em todos os sentidos.

Com pequenos abalos sísmicos, seus passos, mesmo de chinelos, denunciavam a sua entrada; sua cabeça e seus pensamentos, bem mais elevados que os nossos, quase chegavam às nuvens; e suas palavras iniciais, vindas do céu, ressoavam como um trovão inesperado. Era assustador. Até a gente começar a ouvir de verdade.

Seguindo o trovão inicial, daquela figura imponente, vinha uma fala mansa e amiga, tão convidativa, que tornava irresistível o desejo de abraçar as suas pernas como se estivéssemos abraçando uma árvore. Assim, em volta desse sujeito enorme, nos congregávamos ritualmente para celebrar a amizade e a generosidade que ele inspirava em todos nós.

Talvez por isso, quando começaram a discutir como tornar a cidade inteligente e inteligível, ele foi convocado. Ele conhecia a tecnologia, sim, mas também tinha a empatia e a gentileza necessárias para fazer essa transformação na arquitetura e nos processos da cidade, e nas relações e na emoção dos cidadãos.

Como não podia deixar de ser, foi um sucesso. A vida de todos melhorou e ele, que já tinha tantos amigos, se tornou amigo de todos.

Apesar de tanta amizade ao seu redor, ele se sentia sozinho: lhe faltava um amor. E não era por falta de tentativa. Ele tentava, insistia, mas nenhuma das candidatas, estava à sua altura. Sempre faltava algo. Ele até relevava as falhas das pretendentes, mas elas próprias se afastavam, sempre com o mesmo discurso: “Não sou boa o suficiente pra ele”.

O seu sucesso na amizade e o seu fracasso no amor se tornaram tão lendários que ele começou a achar que eram questão de destino. Até conhecer a Pequenina.

Vinda de fora, a Pequenina era também uma especialista em cidades, mas, fora isso, era o seu oposto. Ao contrário dele, nunca usava chinelos, apenas botas; era solitária e feliz com isso; sua voz era baixa, mas incisiva; não conquistava aqueles ao seu redor, mas os dominava. Assim como controlava as pessoas, ela queria controlar as cidades. Enquanto a cidade dele era um encontro prum chopp de fim de tarde, a dela era uma rigorosa função matemática. Inesperadamente, ele se apaixonou.

Os amigos, que raramente faziam objeções aos seus relacionamentos, não se furtaram a dar sua opinião: “Ela é muito dura. Ela é muito mandona. Ela é muito…muito. Enfim, ela não tem nada a ver com você”. E não tinha. Confrontado, ele se explicava: “Vai ver, por isso, eu acho que vai dar certo”. E deu certo. E deu errado, também.

Ele estava nas nuvens. Agora figurativamente. E ela parecia ser, com ele, o oposto do que era com os outros. Em suma, ele estava feliz.

Mas, estranhamente, isso começou a comprometer o seu trabalho. A cidade, sem conseguir competir com esse novo amor, saiu dos trilhos, como uma criança abandonada. E, antes que viessem a questionar a qualidade da sua atuação, ele mesmo abdicou do seu cargo em nome da amada, que também assumiu o seu papel como planejadora da cidade.

No dia em que abriu mão da sua missão em nome do amor, ele e a Pequenina saíram para jantar com os amigos. Dele. Ao invés de choro e lamentos pelo trabalho perdido, ele comemorou como se finalmente estivesse saindo em direção a uma viagem muito esperada. Os amigos, conformados com a sua escolha, se despediram deles e os deixaram sozinhos para celebrar a escolha do amor. Varando a madrugada, depois de consumarem repetidas vezes a sua escolha, dormiram.

Com o sol nascendo, ele acordou feliz e esperançoso, mas não a encontrou na cama. Tentou se mover, mas não conseguiu. Percebeu que, embaixo do lençol, seu corpo estava preso por cordas. Gritou o nome da Pequenina, mas não teve resposta.

Quer dizer, ouviu algo, mas era apenas um zumbido. Seguiu o som quase inaudível com os olhos e a viu: a Pequenina. Ela, muito menor do que já era, quase do tamanho do seu dedo polegar, caminhava, nua, vestindo apenas as suas botas, sobre a sua barriga amarrada. Sob o seu olhar de surpresa, ela lentamente se aproximou do seu queixo, beijou sua boca caída com seus lábios diminutos e sorriu maquiavélica: “Bem-vindo a Lilliput, Gulliver”.

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