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O eterno ciclo

Renascimento

O império, enfim, renasceu. Porém isso não foi surpresa. Seu destino auspicioso já estava escrito na sua origem. Seus fundadores, egressos do império anterior, com o qual tinham aprendido tudo de bom e de mal que o poder pode proporcionar, estavam, desde seus primeiros passos, destinados à gloria. Evitando os erros do passado, e almejando repetir os acertos dos seus antecessores, ele construíram uma versão melhorada e, alguns dizem, definitiva de como o poder deve se estabelecer de maneira justa e igualitária entre todos os que são verdadeiramente iguais. Sob a aclamação do povo, os fundadores, já idosos, passaram, assim, a tocha às novas gerações que iriam perpetuar a sua grandeza. Essa era a exaltação não só desse, mas de todos os outros impérios que antes dele vieram e dos quais eram descendentes, diretos e indiretos. Nas praças públicas, nas igrejas, nas montanhas e planícies, a voz das pessoas ecoava o momento histórico. Diziam, cantavam, oravam, com fé e esperança, que o Poder, na forma como fora originalmente concebido pelos deuses para ser exercido pelos seres humanos, enfim, renascera.

Vita imperium aeternum!

Morte

O império, enfim, morreu. Porém isso não foi surpresa. Seu destino trágico já estava escrito na sua origem. Seus fundadores, egressos do império anterior, com o qual tinham aprendido tudo de bom e de mal que o poder pode proporcionar, estavam, desde seus primeiros passos, destinados ao fracasso. Se esmerando em reciclar os erros do passado, e evitando repetir os acidentais acertos dos seus antecessores, ele construíram uma versão piorada e, alguns dizem, verdadeira de como o poder é: sempre injusto e desigual, privilegiando alguns canalhas, dentre todos os que deveriam ser verdadeiramente tratados como irmãos. Sob as vaias do povo, os fundadores, já mortos, foram amaldiçoados, e as últimas gerações que perpetuaram sua maldade, punidas. Esse era o expurgo final, não só desse, mas de todos os outros impérios que antes dele vieram e dos quais eram descendentes, diretos e indiretos. Nas praças públicas, nas igrejas, nas montanhas e planícies, a voz das pessoas ecoava o momento histórico. Diziam, cantavam, oravam, com fé e esperança, que o Poder, na forma como fora pervertido pelos humanos para ser exercido em benefício de poucos e no malefício de tantos, enfim, estava extinto.

Mors imperium aeternum!

[quod vita est]
[repetere]

Entre a Lei e a Norma

Em toda festa à fantasia, seja nas de halloween, carnaval, ou mesmo nas sem um propósito específico, ela sempre ia vestida de Xerife. Se atochava numa roupa de cowboy dois números menor que o dela; colocava um chapéu de couro marrom; apoiava nos quadris um coldre com revólveres de plástico; e metia no peito, bem na altura do coração, uma estrela brilhante. Estava pronta pra ser a Xerife da festa.

Quando lhe perguntavam por que sempre repetia a mesma fantasia, ela retrucava:

— Repetir não, respeitar o meu nome. Com essa alcunha que mamãe me deu, que outra fantasia eu poderia vestir?

Ela tinha uma certa razão. Pra alguém chamada Norma, ir pras festas vestida de Cowboy fazia todo o sentido. Especialmente quando ela sacava seus revólveres e repetia o slogan que aprendeu quando estagiou na Associação Brasileira de Normas Técnicas:

— Onde não existe a Lei, existe a Norma.

Era perfeito, não?

Calhou que essa história da fantasia, com slogan e tudo, começou a circular, e algumas outras Normas começaram a ser questionadas por que não se vestiam de Xerife. Não adiantava darem mil explicações, sempre eram obrigadas ouvir a mesma ladainha:

— Pô, mas você ia ficar ótima de Xerife.
— Cara, o slogan diz tudo.
— Na boa, não faz todo o sentido?

Claro que fazia, mas todo mundo tem, ou pelo menos deveria ter, o direito de ir às festas com a fantasia que mais lhe agradasse. No início, as Normas resistiram, mas, pouco a pouco, uma a uma, elas foram aderindo.

— Uau! Eu não te disse?
— Ficou incrível! É a tua cara!
— Vai, agora fala o Slogan! Vai ser per-fei-to.

Em breve, a fantasia de Xerife foi se tornando uma indicação para todas as Normas. Porém, quando a disseminação da prática atingiu um determinado nível, as exceções começaram a ser alvo da indignação dos outros convidados:

— Ué? Cadê a fantasia de Xerife?
— Eu pensei que…
— Olha, era melhor que você….

Em pouco tempo, o que era norma social passou a se tornar obrigação, quase uma lei.

A Norma original, quando viu a sua ideia, antes, também, original, ser tão imitada, começou a se incomodar. Resistiu na sua fantasia e no slogan, esperando que as demais Normas cansassem da onda, mas parece que a moda veio mesmo pra ficar. Assim, vencida, como não queria parecer mais uma, apesar de ter sido a primeira, ela simplesmente abandonou a fantasia e passou a ir às festas vestida de várias coisas diferentes. Quando lhe perguntavam por que abandonara o figurino, tinha outro slogan na ponta da língua:

— O objetivo principal da Norma, queridos, é quebrar a Norma.

E, assim, como não podia deixar de ser, mais uma vez, para o prejuízo de todas as outras Normas, a Norma criou uma nova norma.

Nirodha

Nos seus últimos momentos, a vida toda, ao contrário do que dizia o senso comum, não lhe passou pelo olhos; mas foi quase isso. O que ele viu foi um trailer insosso e cheio de spoilers, resumindo o que ele nunca entendeu sobre si mesmo. Pra começar, o amor dos pais lhe foi justificado por questões biológicas, químicas, e comportamentais, totalmente reforçadas pelo hábito e pelos ritos sociais. Seu primeiro amor, descobriu, nunca foi verdadeiro, mas apenas fruto da conjunção da elevação da carga hormonal da adolescência com uma dose exagerada de romantismo de segunda geração. Sua carreira, coitado, nunca foi uma escolha, mas uma série de coincidências misturadas a preguiças e omissões. Seus sucessos, tão vangloriados como conquistas, apenas um misto de sorte e oportunidades não tão bem aproveitadas o quanto poderiam. Seus fracassos, fontes intermináveis de sofrimento inútil, nada mais que a consequência de desejos totalmente justificáveis que escondia de si mesmo. Enfim, tudo a que deu importância não passou de ilusão; porém, tudo que ignorou também não era diferente. Enfim, a vida, se é que ela podia ser chamada assim, era só uma ilusão. Ao invés de lhe desesperar, essa revelação lhe apaziguou: quando não há nada além da ilusão, o que podemos chamar de real? Quando tudo é ilusão, ela não se torna real? Intrigado, e surpreso, pelo paradoxo, riu baixinho, deu seu último suspiro, e descansou feliz, desejando que tivesse descoberto essa verdade, ou, quem sabe, mentira, antes. Ascendeu.