Ensaios

Tradições

2000

– Então, o que você queria me mostrar?
– Aqui, ó.
– Uma fita de vídeo?
– É. Parece até que nunca viu uma fita de vídeo.
– Vi. Claro. Mas o que tem nela?
– Põe aí pra gente ver.
– Você pega a cerveja?
– Pego.
(…)
– Aqui. Seu copo.
– Obrigado.
– Dá o play.
– Tá.
– E aí?
– Jesus! O que é isso?
– São os clipes que eu assistia quando era adolescente.
– Michael Jackson? Beat it?
– Ah, vai dizer que você não gostava?
– Bom, até gostava, mas não tinha na minha fita de clipes.
– VOCÊ TINHA UMA FITA DE CLIPES?
– Tinha. Não entendo o espanto. Todo mundo tinha uma fita de clipes.
– Cadê a sua? Ainda tem?
(…)
– Responde!
– Tenho…
– Então vai pegar.
– Tá, vou pegar, mas não quero ver você rindo, tá?
– E por que eu riria?
– Na minha fita tem uma pá de gravações das paquitas
– AHAHAHAHAHAH
– Viu, só? Não pego mais.
– Não, parei. Pode pegar. Mas por que diabos você tinha tantos clipes das paquitas?
– Você não tem idéia do que era ser nerd com 14 anos…

2006

– E aí, conseguiu gravar?
– Consegui.
– Dá o DVD aqui.
– Não é DVD, é VCD.
– VCD?
– É. É um formato de vídeo que pode ser lido tanto em aparelhos de DVD como em computadores com CD-ROM apenas.
– CD-ROM? Que papo de velho, hein?
– Tá bom, eu sou um velho. Mas quem é que conseguiu seus clipes na Internet, hein?
– Tá, foi você, amor. Desculpa. Eu te amo, tá? Não casei contigo?
– Casou.
– Então, pronto, agora vamos ver os clipes.
– Tá bom.
– U-HU! Beat it!
– Como foi o primeiro que a gente viu, achei melhor começar por esse.
– Ótimo! Pega uma cerveja pra mim?
– Pego, claro.
– Conseguiu baixar tudo?
– Quase tudo, umas coisas não achei no e-mule.
– Procurou no KAZAA?
– Não. Parei de usar aquilo. Tinha muito vírus.
– Ei, o que é isso?
– Deixa eu ver. É o clipe que você pediu de I’ve been losing you.
– Mas essa não era a versão que tinha na minha fita.
– Não era?
– Não. Pô, que chato.
– Chato?
– É. Depois que a minha fita morreu, eu queria ter a chance de reviver ela.
– Mas é muito diferente?
– Um pouco.
– Pensa de outro jeito. Pensa que você está criando uma nova fita. Não só revivendo.
– Hum, pode ser, mas eu queria era a minha fita antiga.
– Eu sei, eu sei. Mas, lembra!, quem vive de passado é museu.
– E o que diabos nós somos?

2014

– Ela dormiu?
– Dormiu.
– Ótimo! Põe os nossos clipes aí!
– Tá.
– O que está havendo?
– Não tá rodando.
– Porquê?
– Deixa eu ver. Olha aqui. Tá todo oxidado.
– O DVD?
– É. O VCD.
– Que porre!
– Ouviu?
– O que?
– Acho que ela chorou.
– Impressão. Tenta os outros DVDs.
– Tá bom. Hum, parece que tá tudo ruim…
– Pô, desde que eu engravidei tô querendo ver os nossos clipes e agora isso! Mais de um ano de espera pra isso?
– Calma, vou dar um jeito.
– Tá, limpar o DVD na camisa vai melhorar muito esse lance. Vou pegar uma cerveja. Você quer?
– Quero.
– O que você está fazendo?
– Estou acessando o Youtube pela TV.
– Pela TV?
– É. Que chique. Põe o Beat it, aí, então.
– Aqui, ó.
– U-HU! Beat it!
– Legal, né?
– É, mas vou te dizer que sinto falta dos DVDs…
– Bom, DVD não dura pra sempre, né? A sua fita, lembra dela?, durou bem mais.
– Verdade. Mas, vou te dizer, não é a mesma coisa.
– Como não? A gente assiste uns clipes, toma umas cervejas, joga conversa fora sobre o passado. É a mesma coisa. A mídia não faz diferença. Teve o VHS, depois o DVD e agora no Youtube. A atividade é a mesma. A essência não mudou.
– Pode ser, mas ainda sinto falta da minha fita.
– Eu sei. Eu sei.
– Olha só! Tá recomendando aquele clipe de putaria do Duran Duran que tinha na tua fita.
– Meu Deus! Não imaginava que tinha ele no Youtube. É mó sacanagem.
– É mesmo. Como você tinha ele na tua fita?
– Eu não tinha. Eu alugava a fita do Duran Duran na locadora.
– Alugava?
– É, lembra?, o clipe era proibido de passar na TV.
– Por que você não pegava um filme pornô, logo?
– Você não tem idéia de como era difícil ser nerd aos 14 anos.
– Ouviu?
– Ela chorou?
– Acho que sim.
– Quem vai? Eu ou você?
– Deixa que eu vou. Pausa aí.
(…)
– Já voltou?
– Já. Foi só impressão.
– Sabe o que estava pensando?
– O que?
– Quando a nossa filha crescer, o que ela vai achar disso?
– Disso o quê?
– Dessas sessões de clipes antigos acompanhados de cerveja.
– Sei lá. Acho que vai achar coisa de velho.
– Será que não vai pensar que é uma maneira legal de revisitar o passado?
– Pode ser, mas ainda vai ser coisa de velho. Além disso quem vive de passado é museu.
– E o que diabos a gente vai parecer pra ela?
– Tem razão. Nós e nossas tradições…
– É. Agora põe o Beat it, aí.
– Tá!
– U-HU!

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