Conheci Marcelo Lachter no dia em que, num momento de desespero, resolvi vender minha biblioteca para pagar uma conta de telefone exorbitante que não era minha culpa. Ele foi à minha casa, comprou meus livros, me deu bons conselhos e 9 meses depois me fez uma proposta que mudou a minha vida: “Quer ser sócio numa livraria?”
Aceitei, sem pensar duas vezes. Me tornei seu sócio na Baratos da Ribeiro, que, para mim, durou apenas 9 meses, mas que existe até hoje, capitaneada por mais um de seus tutelados e meu amigo, Maurício Gouveia.
Marcelo era um gigante em todos os sentidos. Alto, calmo, cheio de sabedoria; juntava hordas de pessoas interessantes ao seu redor. Sempre tinha algo inteligente e cheio de coração a dizer. Apesar de ter um problema físico de visão, que poderia parecer um impeditivo para que trabalhasse com livros, ele tinha o melhor olho que já vi. Sabia escolher pessoas para cargos e amizades, livros para as lojas e em 2000 já tinha visto a possibilidade e tentado criar algo bem melhor do que a Estante Virtual que temos hoje.
Quando a nossa sociedade na Baratos acabou, ficamos afastados por algum tempo, mas logo busquei retomar o contato e as rusgas sumiram rapidamente.
Tentei voltar ao mercado de livros usados 5 anos depois do lançamento da Baratos e ele foi convidado para o lançamento da minha nova loja. Apareceu, analisou as estantes e os livros com seu olho clínico, e me disse: “Você está cobrando muito barato, assim a loja não vai se manter”.
Não deu outra. Fui à falência em menos de um ano e, no fechar das portas, o chamei novamente para comprar todo o meu estoque, que ele levou barato mas com justiça.
Depois de abrir e fechar a minha carreira como livreiro, ele me ofereceu uma carona. “Eu sei que não consigo ver quase nada, mas consegui tirar a carteira. Vamos nessa, pode confiar”. Como fiz antes, confiei. E lá fomos nós de noite, em direção à minha casa, com ele usando as lanternas dos carros da frente como guias.
Quando me deixou na porta do meu prédio, ele me disse: “Comecei a dirigir, pois acho que um adulto que não dirige tem algum problema em tomar o controle da própria vida”. Impactado, um mês depois, tomei controle da minha e comecei a trabalhar de carteira assinada. Quanto a dirigir, ainda não aprendi, mas sempre que entro num carro lembro dele e do seu conselho.
Depois dessas experiências, fomos nos esbarrando pela vida esporadicamente. Fui no lançamento do seu galpão de livros; me envolvi, parcialmente, numa ideia doida que ele teve de criar um curso para executivos baseado na série 24 horas; participei de uma maratona para comemorar o seu aniversário, qual ele mesmo arriou às 11 da manhã; e nos falamos bastante para apoiar um antigo livreiro que estava passando por um momento de dificuldades. No ano passado, lancei um projeto de narrativas sobre o 11 de setembro e pedi o seu depoimento, que ele me enviou com muita generosidade.
Ontem fiquei sabendo do seu falecimento. Nas redes sociais, toda uma geração de livreiros que ele criou fez coro com o que acabei de dizer. Era um cara gigante, de grande visão, com um coração enorme, que mudou a vida de todos que conheceu. Ele, sem fazer esforço, foi responsável por carreiras, empreendimentos, experiências de vida marcantes, e até casamentos e, consequentes, nascimentos.
Marcelo foi uma dessas pessoas que vieram ao mundo para transformar a vida dos outros, e, mesmo não tendo filhos, deu à luz um país mais inteligente, culto, cheio de compaixão e alegria. Que a sua memória seja uma benção a todos nós. Zichrono livrachah.